domingo, 28 de fevereiro de 2010

Livros electrónicos (e-books) e acesso à informação

O post de Gary Becker http://uchicagolaw.typepad.com/beckerposner/2010/02/are-e-readers-the-beginning-of-the-end-for-books-becker.html, mais os respectivos Comentários (a que apenas dei uma vista de olhos) e o post de resposta por Richard Posner, especulam sobre as consequências no acesso à informação e à reflexão deste novo salto na tecnologia da edição que é a dos e-books. E que eu não haveria de deixar de abordar aqui uma vez que este blogue se integra precisamente nessa tecnologia.
A alguém da minha geração - que li e estudei (enfim... o pouco que o fiz!) em papel - parece óbvio que os e-readers não substituirão os volumes impressos em relação à facilidade de manuseamento para consultas, avanços e recuos, e para sublinhados e notas nas margens, e, mesmo que a tecnologia praticamente anule essa diferença, não substituirão os bons e velhos livros no tacto do objecto a explorar, no cheiro misterioso do papel fechado há muito, no conforto das lombadas que não de plástico... Mas não me precipitaria a estender esse juízo às gerações que substituíram a futebolada de rua pelas play-stations, as conversas cara a cara pelos chats ao mesmo tempo que falam ao telemóvel, etc.
Além dessa cautela, talvez o confronto entre a edição em papel e a electrónica deva ser perspectivada mais em complemento do que - como tenderam Becker e Posner - em alternativa. Como disse, este blogue é um exemplo: o ensaio que traz este título está disponível electronicamente; pode ser alugado nesse formato, e não sei se comprado também (para down load); mas pode ainda ser encomendado (no Brasil) em formato de papel, numa edição afinal semelhante à da Oxford University Press, a um preço muito reduzido (visto que não precisa compensar eventuais sobras em armazém). Ou seja, o formato do e-book, mesmo para um ensaio que o leitor porventura gostará de anotar nas margens, começa por se constituir como um outro acesso de consulta inicial que não o dos escaparates das livrarias ou bibliotecas. Mas depois não exclui a leitura em papel, aliás facilita-a no preço, ainda que a atrase (mantendo-a no formato digital do aluguer) no tempo da encomenda e entrega por correio. A complementaridade entre papel e digitalização verifica-se ainda nesta possibilidade de se associar um blogue a um livro, para alargar o horizonte deste último, para eventuais trocas de ideias entre leitores e autor, etc.
Em suma, se a escrita constituiu porventura o maior salto em frente do progresso humano, se a imprensa constituiu uma revolução por estender a comunicação escrita além da minoria que poderia aceder a manuscritos raros, inclino-me a apostar que os e-books apenas potenciarão a herança de Gutenberg.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

E para melhorar o nível da etiqueta Heterodoxias...

(... que The Monkees aqui vieram em parte só por causa do post anterior sobre cepticismo)

Ciências duras, ciências moles, e cultura

Estava marcada para ontem no Porto, no âmbito do ciclo de conferências "Novas respostas a novos desafios" promovido pela Fundação Mário Soares, a conferência "Novas respostas da ciência" de Sobrinho Simões, na qual o Director do IPATIMUP se propôs defender "que é necessário evoluir de uma perspectiva científico-tecnológica para "uma muito mais cultural, política e, no limite, até religiosa". Frisou que acredita que é a cultura que perspectiva a ciência e não o contrário." (v. http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=39787&op=all).
Justificando: "como somos cada vez mais egoístas, mais mimados como sociedade, acostumados a ter tudo, a ter bem-estar e a gastar muito, estas respostas da ciência, por estranho que pareça, se calhar estão a acelerar os desafios que são mais globais: o da demografia, o do clima, o do esgotamento dos recursos naturais"Este é o condicionamento ético das tecno-ciências. Mas há outro:
As ciências modernas desenvolveram-se sobre uma concepção mecanicista da realidade material, podendo esta assim ser decomposta em elementos, associados segundo certas relações, normalmente formuláveis matematicamente. Ao contrário, a concepção medieval era mais organicista, cada parte (qual órgão) só se compreende e subsiste a funcionar num organismo, dotado de alguma espontaneidade (livre do espartilhamento das relações matemáticas). Veja-se a passagem da alquimia para a química. Mas ainda no séc. XX houve quem propusesse um funcionalismo para compreender por exemplo a mente. Ou seja, na base de quaisquer formulações científicas ou aplicações tecnológicas, potenciando mas também orientando ou enquadrando estas últimas, encontram-se concepções gerais de "objecto", "causalidade", etc. Além dos "controlos éticos" que Sobrinho Simões afirmou ser necessário introduzir, há que implementar a constante reflexão crítica, metafísica e epistemológica, sobre aqueles conceitos de base.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Breve exercício de ética aplicada

A ética é a disciplina que aborda a destrinça entre uns comportamentos "bons" e outros "maus", em ordem a que a vida nos corra o melhor possível.
Na cultura anglo-saxónica, hoje dominante também na filosofia, divide-se frequentemente a ética em meta-ética e ética normativa - a 1ª versa as condições de qualquer discurso que distinga um bem dum mal, como os conceitos de "bem", de "valor", etc.; a 2ª versa o modo de orientar aqueles discursos uma vez antes possibilitados. E depois, na ética normativa, distinguem-se 2 grandes posições, o consequencialismo e o não consequencialismo, cada uma com uma versão forte e outra fraca.
Neste post vou ensaiar um exerciciozinho de ética aplicada às iniciativas dos boys (que se o não são tudo fizeram para parecê-lo) que o Partido Socialista pôs na PT, em ordem a um controlo da comunicação social. E a aplicar naturalmente a um Primeiro-Ministro que, sendo o responsável último pela nomeação de quaisquer boys, se co-responsabiliza ao não os demitir quando porventura usam o nome dele em vão.
- Consequencialismo forte, Utilitarismo clássico: os boys deveriam fazer na PT tudo o que optimizasse a relação entre prazer e sofrimento para quem fosse afectado pela sua acção. Ou seja, não importa quais estas fossem, mas apenas aquela sua consequência. Mas, que se perceba, limitaram-se a optimizar as suas carreiras profissionais e naturalmente as contas bancárias, tendo tentado - mas numa estratégia que facilmente lhes trouxe más consequências, logo utilitaristamente má - estender o prazer à nomenklatura do PS no Estado. Muito aquém da maioria dos cidadãos contribuintes afectados... Não é pois por aqui que as suas iniciativas poderão ser julgadas boas.
- Consequencialismo fraco, Rule utilitarianism (talvez se possa traduzir por utilitarismo de regras): os boys deveriam cumprir na PT as regras que teriam as melhores consequências para a generalidade das pessoas na sociedade em que essa empresa se insere, a portuguesa. Repete-se a denúncia anterior.
- Não consequencialismo forte, uma deontologia universal: cada boy deveria fazer na PT o que fosse prescrito por regras que pudessem ser universais, independentemente das consequências de cada acto. Se porém a regra de desrespeitar a opinião alheia, segundo a qual estes nossos boys se comportaram, fosse proposta universalmente, outros desrespeitariam aquela deles, pelo que esta se contradiz a si própria. As escolhas, que eles tão bem apresentaram nas conversas telefónicas escutadas, não exemplificam pois uma deontologia universal.
- Não consequencialismo fraco, uma deontologia prima facie (sendo o resto igual): repete-se o anterior respeito por regras, mas agora apenas em situações normais, que o espírito da lei, em situações excepcionais, pode até justificar a violação da letra da lei. Imagino que neste âmbito se arrebitará a orelha dos boys do PS na PT, pondo-se as engrenagens das suas mentes a trabalhar na justificação de alguma excepcionalidade na TVI, (tenho ideia que) na TSF... Bom, mas uma vez que o espírito desta lei será a defesa da democracia, caber-lhes-á demonstrar que o controlo privado desses órgãos de comunicação social atentaria contra aquele regime. Do qual (refiro-me à democracia representativa em que vivemos, não à democracia popular das dezenas de milhão de assassinados nos Gulag e nas Revoluções Culturais) um dos traços é uma comunicação social independente do Estado. Ou seja, a liberdade de opinião faz parte da normalidade democrática. Apenas alterável em situações excepcionais - guerras, etc. - que de resto a lei democrática prevê... mas às quais, apesar de ameaças como a de bancarrota para daqui a uns 3 ou 4 anos, (ainda) não chegamos.
Conclusão: para mal dos pecados destes boys e de quem os segura, e, principalissimamente, para mal dos pecados de nós outros que não só os sustentamos como ainda temos de lhes sofrer os resultados, não parece que essa gente saiba muito da ética contemporânea.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Televisão: la zone Xtrême

É no mínimo incomodativo ver como é logo o partido político ao qual a democracia portuguesa mais deverá - desde a sua (do PS) fundação por pessoas que assumiram os custos pessoais do enfrentamento directo ao Estado Novo, passando por se firmar como pivot da resistência à deriva autoritária comunista, até aceitar o custo político do saneamento financeiro do país para a adesão à CEE - que hoje se encontra enredado numa teia de indícios de tentativa sistemática de controlo da opinião pública crítica, em especial na televisão. E ao contra-ataque do líder socialista, saltando sobre o conteúdo das notícias para se concentrar na forma da sua obtenção - o tal "jornalismo de buraco de fechadura" com a divulgação de escutas telefónicas - já qualquer romano retorquiria que à mulher de César não basta ser séria... Mais deprimentes do que os erros, Sr. Primeiro-Ministro, são quaisquer justificações suas ulteriores - especialmente se se esfarrapam na ignorância de máximas políticas milenares!
Mas compreende-se que a tentação é grande.
E a prová-lo vem hoje este desenvolvimento daquela que terá sido a mais célebre experiência da história da psicologia social: na década de 1960 Stanley Milgram investigou a percentagem das pessoas que, sob indicação de alguém vestido como cientista ou técnico, se dispunham a penalizar com choques eléctricos de crescente intensidade quem não fosse capaz de aprender alguns dados. A hipótese testada por Michel Eltchaninoff e Christophe Nick em 2009 foi a de que, mais do que a autoridade e legitimação científica, vale hoje a autoridade e legitimação televisiva - se acontece na TV, então é verdade e é bom! Aplicando o protocolo daquela outra experiência, convidaram 80 voluntários a participarem num (fictício) concurso televisivo, cujas regras eram as de penalizar com choques eléctricos os concorrentes que falhassem um questionário; estes voluntários julgavam que quem estaria em jogo seriam esses concorrentes, todavia estes últimos eram representados por um actor que simularia o sofrimento após falhar (intencionalmente) a resposta, bem como participantes activos eram as pessoas do público que gritavam "Cas-ti-go!" para estimular o voluntário na consola de comandos, além da apresentadora que garantia que as eventuais responsabilidades cabiam integralmente aos produtores do programa, e não aos voluntários. O resultado é o que se vê neste videoclip:



Alguns voluntários colocaram-se rapidamente objecções éticas. Outros não tanto. Mas a maioria deles desempenhou as funções que lhes cabiam com naturalidade. Isto é, não mostraram uma ferocidade enfim liberta pela ausência de responsabilidades, apenas (julgaram que) torturaram e mataram uma pessoa na simplicidade de mais um jogo televisivo! E mais: na experiência de Milgram, 60% dos voluntários chegaram a aplicar a descarga que lhes era dito ser mortal. Na experiência televisiva actual, esta parcela foi de 82%...

A realidade hoje só é virtual, e a televisão o seu profeta.

(Por amor de Deus, que nunca ninguém convide José Sócrates - ou qualquer dos socratentos que logo lhe emergiram na peugada - para os comandos duma consola como essa!...)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Sobre as potências emergentes...

Este é o Shinkanzen japonês
 ... e este é o comboio indiano que, dizem, está a caminho de apanhar aquele outro.

Os actuais agentes da ordem mundial

Em correlação ao post anterior creio vir a propósito a nota 2 do ensaio (referido na coluna ao lado) em cujo horizonte evolui este blogue:
"A guerra é outro tema que exemplifica a ruptura dos paradigmas modernos, os quais presumem que o Estado é o principal interveniente nesse fenómeno. Em conformidade a estes últimos o pensamento cinde-se entre duas interpretações: por um lado a teoria dita liberal ou idealista da estratégia, que defende que os Estados tendem naturalmente a concertar-se entre si em vista ao comércio, etc., para optimizarem os poderes que lhes são respectivamente possíveis. Surgindo a guerra apenas por culpa dos que se desenraízam da ordem das coisas, os quais importa assim destituir. Por outro lado a teoria dita realista, segundo a qual os Estados são naturalmente predadores uns dos outros. Pelo que, enquanto a Nação constituir a suprema identidade comunitária, na falta de qualquer instância reguladora os Estados manter-se-ão em jogos de poder que dão lugar à guerra sempre que se quebre o equilíbrio. A paz dependerá então da manutenção dos equilíbrios naqueles jogos. Os anos 1990, porém, subverteram logo pela base esse equacionamento Moderno das relações mundiais. Pois pela primeira vez um império estendeu-se à escala planetária (ainda que apenas nessa década!), ao mesmo tempo que os restantes Estados sofrem os condicionalismos das multinacionais económicas, das mafias, etc. Com esta relativização dos Estados-Nação deixou de se poder equacionar as relações mundiais como a simples alternativa entre o idealismo liberal e o realismo, em função do poder legislativo, executivo e judicial relativo a uma Nação e um território. Vejam-se conflitos como o que opõe a Al-Qaeda e o Ocidente, que parece ultrapassar uma disputa por esse poder.
            Na nova linha dita “construtivista” em teoria da estratégia, Thierry de Montbrial (2002) propõe então o conceito de “unidade activa” para identificar os agentes estratégicos – aqueles sem os quais as relações colectivas seriam diferentes. Isto é, dada uma relação ou problema, “agente” é aquele que faz aí qualquer diferença. Podem ser unidades activas nessas relações os Estados-Nação, mas também as ONG’s, os grandes bancos, a ONU, etc., as quais fazem a diferença em planos e de formas distintas. Mas, para a fazerem, todas têm que verificar duas condições: em segundo lugar, uma organização; em primeiro lugar, fundando a anterior, uma cultura comum aos respectivos elementos. É a partir destas que as unidades activas orientam os seus comportamentos. Cabe assim formular o processo de constituição cultural."

Política - Por um realismo ao serviço do idealismo

O recente Nº 1 (Janeiro/Fevereiro, 2010) do Vol. 305 da revista The Atlantic traz um artigo do historiador David Kennedy que sugere uma articulação (hierarquizada!) entre 2 termos frequentemente contrapostos em política: idealismo e realismo. Em "What would Wilson do?" (pp. 90-94) o autor reporta esse último termo ao clássico dito de Tucídides - os fortes fazem o que querem, os fracos sofrem o que lhes cabe - e ao paradigma internacional estabelecido pelo Tratado de Vestefália - que em 1648 reconheceu a soberania dos diversos Estados. Os realistas procuram assim implementar os respectivos interesses, mas numa rede de reconhecimento mútuo que faculte alguma segurança geral (veja-se a orientação da política externa norte-americana por Kissinger aqui em Sobre a actual retórica política). Em troca, os idealistas assumem os respectivos valores como universais, e dedicam-se à sua realização em qualquer sítio. Kennedy aponta o credo de George W. Bush na democracia e no liberalismo e a sua invasão do Iraque, como exemplos acabados desta posição, de resto própria à visão messiânica que muitos norte-americanos também desde o princípio tiveram do seu país.
A essa contraposição teórico-prática, este historiador contrapõe por sua vez a tradição encetada logo pelo Secretário de Estado John Quincy Adams a 4 de Julho de 1821, quando declarou que a América estaria do lado de quem, em qualquer sítio, lutasse pela liberdade, mas sem se chegar a envolver em conflitos que requereriam recursos morais, humanos e materiais para além dos disponíveis. Nesta linha, Woodrow Wilson lançou as bases da organização mundial que, após a II Guerra Mundial, viria a facultar não só o maior poder de sempre dos EUA como mesmo as melhores 3 décadas de desenvolvimento humano de sempre para o mundo ocidental e Japão. O Presidente Wilson fê-lo sob a máxima de "tornar o mundo seguro para a democracia" - distinta de "tornar o mundo democrático"! - num respeito pelas inter-relações de Vestefália desde que sujeitas a regras, nomeadamente democráticas, que respeitassem os valores norte-americanos.
Com Wilson, pois, mantém-se uma orientação fundamental, que apenas pode ser "idealista", mas cuja implementação é a cada passo "realistamente" condicionada. E os resultados, seja pelo critério realista seja pelo critério idealista, foram os melhores.
Parece-me uma sugestão estimulante para qualquer comunidade ou país, cujas propostas políticas, mesmo que internamente divergentes, se deverão assim constituir como respostas a estas 2 perguntas consecutivas:
1ª) quais são os nossos valores distintivos? - i.e. nas opções que enfrentemos, o que quereremos salvaguardar acima de tudo como indivíduos e na nossa sociedade?
2ª) na presente situação - e esta pergunta repetir-se-á de cada vez que a situação se altere - o que nos condiciona na implementação daqueles valores?
Um país que não responda à 1ª pergunta, será como um cego. Se não responder à 2ª, estará caminhando na berma dum precipício. Não respondendo a ambas, terá a mesma probabilidade de sucesso dum cego caminhando pela berma dum precipício.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

I'm a believer (... in spite of seeing their faces!!)

Contra o cepticismo e subjectivismo diletante

Procurando neste blogue apenas assinalar pistas em diversas áreas do conhecimento, porventura estarei a sugerir a algumas pessoas uma atitude céptica - o melhor seria desistir de quaisquer orientações cognitivas da acção. Mas não só julgo que o cepticismo está errado, como penso mesmo que na presente situação económico-política tanto mundial quanto particularmente portuguesa seria especialmente perigoso. Trago assim aqui a nota 18 de O Nó do Problema Ocidental - A Dimensão das Ciências, o link para um artigo dum filósofo português contemporâneo que abre outra frente contra o cepticismo, e farei a seguir uma sugestão musical a propósito (!).
"Dretske ["The pragmatic dimension of knowledge", Philosophical Studies, 40 (1981) 3: 363-378] baliza o valor da justificação em conformidade à relação lógica de dois conjuntos das alternativas em causa em cada conhecimento. Ou seja, podemos recusar umas quantas situações como falsas sem pruridos cépticos. Em primeiro lugar, devemos recusar quaisquer situações que pertençam ao Conjunto de Contraste (CC) – o de todas as situações necessariamente eliminadas pelo que se sabe, ou seja, por aquilo de que se não está a duvidar (ex. se me pergunto se estou sentado num banco ou numa cadeira, não questionando pois a minha posição, posso desconsiderar a alternativa de estar a fazer pesca submarina – durante a qual não me sentaria). Em segundo lugar, podemos ainda recusar situações que pertençam ao Conjunto de Relevância (CR) – aquelas cuja não verificação não é necessária, mas se considera estarem justificadas. O erro dos cépticos, diz esse filósofo, é o de pressuporem que CR é sempre igual a CC, pois o primeiro revela-se apenas como um subconjunto próprio do segundo – isto é, pode haver alternativas não necessariamente excluídas que todavia sejam irrelevantes (como o ar que enche o frigorífico vazio de comida). Na questão sobre quando se poderá recusar situações hipotéticas, Dretske resume os critérios de pertença ao CR na ideia de que a diferença entre as alternativas relevantes e irrelevantes reside no tipo de alternativas que se encontra em cada situação objectiva – abrindo assim a porta a CR’s cujo número varie entre a unidade e algum número pouco superior, ou seja, a conhecimentos certos, ou quase.
Quanto às muito úteis thought-experiments dos cérebros numa cuba, da pastilha alucinogénica… pertence ao meu Conjunto de Contraste (i.e. considero necessariamente recusada) a situação de que os seus autores tenham deixado de fora dos respectivos Conjuntos de Relevância (i.e. que julgassem necessário verificar), assim que cansados de tanto pensar lhes tenha vindo a fome, a hipótese de que as suas despensas e frigoríficos fossem ilusões virtuais, e portanto se tenham deixado exaurir em vez de se considerarem justificados em procurarem aí comida. Alguém pode no entanto infirmar esta minha classificação – como no exemplo dos pára-quedas na nota seguinte – se se apresentar como contra-exemplo após ter passado o que nós outros, seus interlocutores, chamamos “meio ano” sem procurar nem receber alimentação pelo facto de não ter a certeza especulativa de que o frigorífico a contenha, ou que o biscoito que lhe levam à boca seja comestível. Numa palavra, os desafios cépticos são úteis para se destruir o realismo ingénuo, mas pertence ao meu Conjunto de Relevância (i.e. considero-me justificado em recusar) que adultos que reclamem um cepticismo total perante qualquer questão que remeta para princípios, valores ou metodologias sejam outra coisa que não diletantes, pseudo-intelectuais, ou meros oportunistas."

O cepticismo absoluto, rapidamente degenerado no diletantismo, abre ao chamado subjectivismo - e.g. para um conservador há 2 sexos, para um construtivista haverá tantos quantas as possibilidades dum ser humano viver as questões de género, e o 1º número é tão verdadeiro (para aquele) quanto o 2º o é (para este). Mas sobre o subjectivismo passo a palavra a Desidério Murcho em http://criticanarede.com/antropocentrismo.html.
Em suma, como The Monkees, ainda que numa versão minimalista podemos dizer: I'm a believer!

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Urgentemente: pelo pensamento disjuntivo e científico!

Nestes dias que correm em Portugal vem ainda mais do que de costume a propósito a chamada de atenção de Alexandre Quintanilha para os valores que orientam a ciência, que aqui referi indirectamente em Ciência - justificação... e beleza! . A saber "i) a exactidão preditiva, ii) a coerência interna da teoria proposta, iii) a consistência desta última com os princípios que estruturam o horizonte em que ela se integra, iv) a sua capacidade de esclarecer simultaneamente dados distintos, e v) a sua fecundidade na abertura de novos domínios de pensamento. Valores aos quais [Quintanilha] adiciona vi) o da beleza da teoria". Penso que os valores ii e iii podem ser reunidos num único; em troca, mesmo quem não aprecie particularmente a navalha de Ockham (que corta os conceitos que se não usam) suponho que aceitará, antes do da beleza, o valor da economia teórica - de modo que entre teorias alternativas se preferirá aquela que libertar mais recursos ou potencial para desenvolver o trabalho a que se proponham.
Vem isso a propósito, por um lado, porque esse é o tipo de pensamento que melhor tem esclarecido o mundo, ou resolvido problemas, em especial desde a Revolução Industrial para cá. E se nós temos hoje problemas ou confusões e obscuridades em Portugal!...
Mas também vem a propósito, por outro lado, porque para a resolução dos problemas estritamente económicos precisamos de capital, que apenas podemos receber dos países (para não variar!) do norte, cujas imprensas não encontraram há dias melhor sigla para designar o conjunto de Greece, Portugal, Spain, Italy (aqui por ordem decrescente de dificuldade financeira) do que "PIGS"... É o regresso da lenda negra, com que aqueles países procuraram legitimar a conquista dos impérios ibéricos enfatizando tudo o que nestes encontravam de mal, e silenciando o que encontravam de bom. E entre o mau encontravam o obscurantismo, a falta de racionalidade crítica, o pensamento único... enfim, a aversão à cientificidade. Não importa se concordamos ou discordamos deles; o que importa é que é do juízo deles que dependem hoje as nossas finanças, e que eles nos estão julgando tendencialmente como pigs - imagina-se a sua disposição para nos emprestar dinheiro!
Por estas 2 razões penso que, nestes dias que correm, é imperativo que, primeiro, suspendamos qualquer pensamento inclusivo de "ser" e "não ser", "verdade" e "falsidade" - que aqui ando a apontar desde Portugal - uma cultura de fronteira - e que reconheçamos que há coisas que têm consequências para lá do que dizemos delas (são as que satisfazem o predicado "ser"). Bem como que há ideias que satisfazem o predicado "verdade" - ou "correcção", "utilidade"... aqui não faz diferença - e outras que não o satisfazem, e que os melhores critérios para as distinguir, percebendo por este meio as consequências mais prováveis de cada opção possível, são os que implementam os valores científicos.
Desde a discussão do Orçamento de Estado na especialidade, à decisão sobre TGV's e aeroportos, passando pela pressão pública sobre tudo isso, aí estaremos escolhendo entre os pensamentos inclusivo ou disjuntivo, mágico ou científico.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

No Declínio do Império Americano... Alors, peut-être je viendrai chez toi chauffer mon cœur à ton bois

Em 1986 Denys Arcand filmou Le Déclin de l'Empire Américain, sobre a redução das vidas de 4 historiadores - se bem me lembro, que tão a propósito um deles reconhecia não ser(em) um Braudel... - aos prazeres imediatos da cama e mesa. Afinal a menorização epicurista condenada por Strauss e pelos islamitas no post anterior...
Aos declínios civilizacionais os investigadores fazem suceder a invasão pelas civilizações contíguas - cf. O Nó do Problema Civilizacional - A Dimensão das Ciências, Cap. 3. Em 2002 Arcand voltou às mesmas personagens, com os mesmo actores, para filmar Les Invasions Barbares: um dos amigos tem uma doença terminal, os amigos e a mulher reúnem-se numa despedida (o videolip abaixo começa com a despedida da filha por webcam), e para a morte assistida que o filho lhe arranjara.
Até que, na descolagem do avião que os leva de regresso a casa, a nora do falecido, sob os primeiros acordes de L'Amitié, encosta a cabeça ao ombro do marido e lhe diz "Je t'aime"... enquanto a voz de Françoise Hardy continua para lá do avião que desaparece no horizonte, ressaltando do genérico branco em fundo preto que suavemente passa num culminar, num remate que dá o sentido global afinal aos séculos de história que o avião deixou para trás. (Apetece-me dizer que este será o mais comovente genérico da história do cinema! - mas eu dessa história conheço quase nada!).
Letra: Jean-Max Rivière; música: Gérard Bourgeois; 1965

Beaucoup de mes amis sont venus des nuages
Avec soleil et pluie comme simples bagages
Ils ont fait la saison des amitiés sincères
La plus belle saison des quatre de la terre.
Ils ont cette douceur des plus beaux paysages
Et la fidélité des oiseaux de passage
Dans leurs cœurs est gravée une infinie tendresse
Mais parfois dans leurs yeux se glisse la tristesse.
Alors, ils viennent se chauffer chez moi
Et toi aussi tu viendras.
Tu pourras repartir au fin fond des nuages
Et de nouveau sourire à bien d'autres visages
Donner autour de toi un peu de ta tendresse
Lorsqu'un autre voudra te cacher sa tristesse.
Comme l'on ne sait pas ce que la vie nous donne
Il se peut qu'à mon tour je ne sois plus personne
S'il me reste un ami qui vraiment me comprenne
J'oublierai à la fois mes larmes et mes peines.
Alors, peut-être je viendrai chez toi
Chauffer mon cœur à ton bois.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Entre Leo Strauss/Al-Zawahiri e Charles Taylor - A força das ideias

Um automóvel a bloquear-me a garagem impediu-me há bocado a comparência a uma reunião, abrindo-me tempo para pôr mails em dia e para ver na íntegra o filme "The power of nightmare", 1ª parte, no post anterior - não direi que este foi um mal que veio por bem... mas pelo menos que pôde ser bem aproveitado!
Apesar da imagem cortada, a locução acompanha-se bem - julgo ser uma leitura muito sugestiva da história internacional recente, e do que conta como seu factor.
Mas depois do seu longo visionamento apontarei apenas 2 notas e mais 1 (que a garagem bloqueada não desculpa a falta a outras tarefas!...): Uma, que bastaria a George Orwell ter chamado ao seu livro "2000", em vez de "1984", e ter dado umas pinceladas religiosas nos discursos oficiais dessa sua obra, para que esta se tornasse numa candidata acabada a representação dos nossos dias segundo aquele filme.
A outra nota, para assinalar que o liberalismo a que se referiu tanto Leo Strauss - acusando-o de promotor do egoísmo e enfim do relativismo e debilidade moral - quanto os islamitas como Al-Zawahiri - acusando-o de ter impregnado o povo egípcio cegando-o para uma reacção ao regime de Sadat - será quando muito apenas uma degeneração do liberalismo que Charles Taylor, na 2º obra referida em 1989-2009: 20 livros que mudaram a nossa visão do  , identificou como próprio da Modernidade ocidental.
O filósofo canadiano argumenta que o conceito de "indivíduo" não se constitui por abstracção de qualquer rede social, isolando-o como um átomo de uma molécula. Antes constitui-se precisamente na sua interacção nas redes de que participa, não se lhes esgotando dada a iniciativa, ou as escolhas que cada indivíduo continua fazendo nesse jogo de influências, condicionamentos, apelos, oportunidades... Segundo este argumento de Taylor, dir-se-á então que os neo-conservadores que invocam aquele 1º filósofo norte-americano, bem como os fundamentalistas religiosos islâmicos, se opõem a uma realidade que simplesmente não o é (real) - i.e. o "liberalismo" de que falam pouco terá acontecido.
Isto não significa, claro, que problemas como a alteração dos equilíbrios ecológicos, a quebra demográfica, a evolução da criminalidade, o aumento das dívidas públicas e do endividamento externo de muitos países ocidentais,... não aconteçam. Apenas que a sua causa não será o liberalismo que mais aconteceu desde a II Revolução Industrial... aliás, será de perguntar se mais depressa o neo-conservadorismo que lhe respondeu desde o fim da década de 1970 não terá algumas culpas no cartório...
Enfim a 3ª nota, anexa às anteriores: quanto mais plausível parecer a interpretação da história proposta naquele documentário da BBC, maior parecerá a força das ideias - e assim a responsabilidade de quem as promove.