quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Da filosofia nos séc. XIX e XX

Uma passagem da conversa ontem com Filomena Ferreira lembrou-me este rascunho que guardei há poucos anos, quando o encontrei num ficheiro num arquivo que me preparava para apagar. Estava assim inacabado (mesmo sem ponto final), e não me lembro como pretenderia desenvolvê-lo, imagino apenas que o terei escrito num dia algo azedo...

Crónica do campeonato entre os Travessas e os Pracetas nos últimos 200 anos

Se se perguntar a uma ocidental culta (ladies first: comecemos por conjugar no feminino) pelos filósofos cujos nomes lhe são familiares, ou mesmo de cujas obras tem algum conhecimento, é provável que esta nossa amiga aponte autores como Platão e Aristóteles, se calhar S. Agostinho ou S. Tomás de Aquino, naturalmente Descartes e Kant, mas talvez já não chegue a reconhecer Popper, Austin...
            Com efeito, se ela se interessar por exemplo pela reforma das Nações Unidas é possível que tenha ouvido falar do projecto de Kant para a paz entre as nações.  E se for jurista deverá conhecer o imperativo categórico, ou a dificuldade teórica do postulado da liberdade humana.  Já se for antes chegada à matemática talvez reporte esse filósofo alemão ao intuicionismo, corrente segundo a qual os objectos matemáticos são postos pela mente que os considera.  Precisamente o contrário do que afirmam os “platónicos”, que postulam antes entidades abstractas como os números, cujas leis operativas são descobertas por essa ciência.  Segundo Karl Popper a escolha entre quaisquer posições científicas deve começar por aferir as respectivas capacidades de se sujeitarem a algum contra-exemplo.  Sendo porém o ensino das ciências em Portugal aquilo que é, não me admiraria que o nosso matemático (enfim, não esqueçamos os homens) não esteja à vontade nesses terrenos epistemológicos.  Já a Descartes conhece desde o 7º ou o 8º Ano de Escolaridade, concretamente pelos gráficos de eixos coordenados.  E se daí enveredou pelas ciências da vida ou pela psicologia então certamente saberá como António Damásio o reportou ao dualismo antropológico que separa o espírito (mente) do corpo, radicando naquele o conhecimento deste último assim como de tudo o resto.  Se tiver inclinações religiosas, críticas como a desse neurocientista talvez o levem então a contrapor à via introspectiva de S. Agostinho a descoberta tomista do Criador no conjunto das Suas criaturas, implementando um investimento espiritual nas ciências da Natureza que se filia na tradição aristotélica.  Aliás, se for biólogo, estará perfeitamente familiarizado com o trabalho de classificação que Aristóteles fundou.
            Não vale a pena prolongarmos a divagação, creio que as linhas antecedentes são já significativas – nomeadamente da razão pela qual S. Tomás chamava a esse último autor “o Filósofo”: é que este teólogo, que apenas fez uma perninha na filosofia com o opúsculo O Ente e a Essência, encontrava na obra aristotélica a maioria das concepções ou instrumentos teóricos que lhe permitiam o trabalho especulativo.  Ou seja, para S. Tomás assim como para aquela interlocutora, “filosofia” significa uma actividade e respectiva obra que interfere em muitas outras actividades e obras – assim como o resultado destas é significativo para aquela.  Pelo que na nossa conversa não usaremos o nome “filósofos” como equivalente a “Os Leões da Travessa da Saudade”.
Esta última expressão designa um grupo de compinchas que se reúne a cada quinze dias para jogar uma futebolada com os Águias da Praceta D. Sebastião, nuns encontros que não têm outras consequências além da boa disposição geral... e mais um bocado de colesterol pelo entrecosto com que recuperam do pontapé na bola.
            Com certeza que não temos no entanto que ficar reféns daquele significado da palavra “filosofia”.  Inclusivamente, se por acaso algum de nós gostar de churrasco mas não se der bem com ginásticas, poderá sugerir a um e outro clube que abram umas secções ditas “filosóficas”.  O nome significará então o conjunto dos encarregados, digamos, pelo tintol nas quinzenais almoçaradas, e que durante o futebol dos outros disputariam eles por exemplo a melhor interpretação da obra heideggariana – do primeiro ao último volume, seria a garantia de se deixar para os netos a bela tradição destas churrascadas.  A única diferença entre umas e outras secções é que os membros das filosóficas durariam menos do que os das futebolísticas – ao colesterol não contraporiam o chuto e o encontrão –, no resto... seriam ambas igualmente inconsequentes.
            É precisamente por essa inconsequencialidade que o nosso interlocutor inicial é capaz de não passar do séc. XVIII para diante.  Entretanto se for micaelense (e ocidental, e culto – conjunção que poucas vezes tenho tido o prazer de encontrar) poderá não lhe ser estranha, via Antero de Quental, a dialéctica hegueliana (séc. XIX), que se constitui como uma concepção radical do movimento.  Todavia, a não ser que o evolucionismo de Darwin ou a 2ª lei da termodinâmica de Clausius, Boltzmann... se não possam formular sem o recurso a uma dialéctica entre o ser e o nada intrínseca aos entes como tais – o que a avaliar pelas formulações correntes não me parece que seja o caso – a filosofia de Hegel será inexistente no horizonte natural.  É certo que o mesmo não se dirá do horizonte humano, nomeadamente da teoria hegueliana da história que estruturou a dialéctica materialista formulada por Marx.  Mas compreendamos essa senhora que amavelmente acedeu ao nosso interrogatório: se calhar por tanto se ocupar de coisas mais actuais como os condicionalismos culturais do projecto político-económico europeu, como os obstáculos religiosos à globalização comercial, etc., já nem se lembra da interpretação marxista dos processos históricos.  O que esta doutrina implicou já não existe no mundo dela.  Assim como muito menos subsiste o positivismo oitocentista no panorama científico desde meados do séc. XX para cá.  É por isso que no título desta crónica me estendi aos “últimos duzentos anos”.
            De então para cá o deserto filosófico parece-me claro.  Porventura a limitação dos meus conhecimentos em história das ideias tolhe-me a vista para mais umas quantas palmeiras.  Mas, ainda assim, não são estas que transformarão o areal numa viçosa encosta arborizada.  Dos heideggarianos já falámos.  Entretanto, para colaborarem com os colegas das secções de futebol, os Águias da Praceta D. Sebastião (ou vice versa, não se revoltem os sportinguistas que isto afinal não tem consequência alguma) proporiam aos adversários recontros também sobre os textos de Wittgenstein: não se procura marcar golos nem evitá-los, mas cultivam-se todas as formas de anular umas e outras jogadas – excelente escola de arbitragem.  Atenção porém ao conviva que, um pouco ao lado, poderá trazer à colação obras como a de J.L. Austin.  Se for linguista valer-lhe-á a pena poupar-se no vinho, pois à segunda-feira essa obra ajudá-lo-á no desenvolvimento da gramática – ou seja, já não é inconsequente, já não é um jogo.  Todavia, como disse atrás, parece-me que esta será bem mais palmeira solitária que árvore de bosque cerrado.
            Agora esses churrascos dominicais não passam duma bela fantasia.  A verdade, pelo contrário, é que as jogatanas entre os Travessas e os Pracetas foram erigidas, em nenhum lado mais do que neste país que somos, a travestis daquelas outras obras filosóficas que primavam pela consequencialidade.  “Travestis” apenas, que ninguém nas bancadas desse campeonato se esquece de que a filosofia é a ciência com a qual ou sem a qual se fica tal e qual.  De qualquer modo lá arranjaram um canto à mesa do Orçamento do Estado, e assim andam uns a jogar enquanto outros se têm que sustentar a si e mais ao entretenimento dos primeiros. Pelo menos não podemos esquecer

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