terça-feira, 29 de setembro de 2009

domingo, 27 de setembro de 2009

Ainda Darwin, e o "Deus" da Bíblia ou do Corão... (25/09/09, 3º)

Neste último post em resultado do almoço com o João Paulo, assinalarei uma ideia que nos surgiu na conversa: num recente colóquio sobre Darwin um cientista açoriano terá repisado, pela enésima vez (!), a não intercessão entre razão e fé. Desse modo a explicação da evolução pela i) contingência de novidades pontuais, ii) selecção das mais adequadas ao meio, e iii) transmissão genética destas características, em nada beliscaria uma criação intencional dos entes por um Outro transcendente.
Não é assim.
Nos casos em que o que a fé postula é precisamente o que é negado pela razão esta intersecta aquela, ou seja, a fé enfrenta um problema que urge resolver. Foi por isto que S. Tomás de Aquino escreveu uma série de provas, não propriamente da existência de um Criador, mas da plausibilidade racional dessa existência, depois postulável pela fé - ressalvando porém que a essência, ou os traços de identidade desse Criador escapam a tal abordagem racional. (Falta hoje uma inteligência superior como a desse dominicano para enfrentar, seriamente, o desafio colocado pelo darwinismo...)
Apontarei porém que este desafio não se coloca exactamente à existência de um Criador, nem sequer a uma sua semelhança com as criaturas humanas, mas sim à sua intencionalidade para com estas. Isto é, o darwinismo é compatível com uma origem (e sustentação ontológica) de todo o processo evolutivo pela acção criadora de um ente não dependente desse processo; é compatível ainda com o reconhecimento, por parte destes espécimes humanos que terão surgido pelo acaso e pelas contingências do meio, de que alguma semelhança poderá haver dada a capacidade destes espécimes para criar artística, cientificamente... ou desenvolver criativamente também na ciência, técnica... O acaso da evolução desta espécie no seu todo implica porém que o Criador não intervenha nela. Por outras palavras: ou bem que rezar por exemplo pela recuperação de um filho não tem outro sentido que um autoconforto de alguém que sucumbe ao desespero, ou bem que, contra o darwinismo, há que justificar o inteligent design (teoria criacionista que aceita a evolução, mas orientada para uma meta destinada à partida).

[Analisei e avaliei logicamente a reacção do darwinista Richard Dawkins aos argumentos pela existência de um Criador em http://www.lusosofia.net/textos/albergaria_miguel_soares_de_desilus_o_de_dawkins.pdf. Nesse artigo (para que aliás tenho ideia que já remeti neste blogue), sugeri ainda que, na porta aberta por S. Tomás, na tradição cristã haverá 2 sentidos, e não 1, do termo "Deus". Questões que vão muito, muito para além da ligeireza destes posts em blogues, redes sociais...]

O darwinismo e um contextualismo epistemológico (25/09/09, 2º)

Richard Lewontin, no artigo referido no post anterior, reflectindo sobre a força das teses de Charles Darwin, conclui postulando que "there are different modes of 'knowing', and we 'know' that evolution has, in fact, occurred in a stronger sense than we 'know' that some sequence of evolutionary change has been the result of natural selection" (op.cit.: 21).
(No embalo de remissão para outras notas) em http://www.webartigos.com/articles/13591/1/o-que-e-conhecer/pagina1.html esbocei como que a árvore que reconheço na epistemologia contemporânea, cuja 1ª alternativa será entre invariantismo (1 só sentido de "conhecimento") e contextualismo (o sentido daquele termo varia conforme o contexto em que é usado). A conclusão de Lewontin tende para este segundo ramo.
Mas sobre as respectivas virtualidades, bem como sobre os problemas teóricos com que depara, remeto para as 1ªs sugestões bibliográficas que também ali deixei.

Um lamarckianismo do darwinismo? (25/09/09, 1º)

No nosso recente almoço mensal (enfim regularizados! - cf. Crise civilizacional... e desenvolvimento técnico?...) o meu amigo João Paulo Constância trouxe-me a fotocópia do artigo de Richard Lewontin em The New York Review of the Books (vol. 56, May 28, 2009, Nº 9: 19-22) onde esse autor pergunta "Why Darwin?". Concretamente, porque tanto estamos hoje a celebrar Darwin, se a teoria dita darwinista foi ao mesmo tempo formulada de forma próxima por Alfred Russel Wallace, se foi Mendel que (também por esse tempo) facultou a genética que responde ao requisito darwinista da hereditariedade, e se afinal o evolucionismo se constituiu como paradigma não só biológico mas físico, económico... décadas antes de A Origem das Espécies? Em suma: o que é que, nessa evolução das ideias, se deve a Charles Darwin?
Reconhecendo a influência do meio intelectual da época, Lewontin chega até a sugerir que se o liberalismo clássico, uma vez reforçado pela teoria da selecção natural, "is often referred to as 'social Darwinism', we would be much more in aggreement with historical causation were we to call Darwinism 'Biological Competitive Capitalism'" (op.cit.: 20) - ainda que o autor saliente a diferença entre essa doutrina económica, que faculta a evolução (económica, social, política...) de uns poucos indivíduos, e essa teoria biológica, que explica como toda a espécie evoluiu.
Voltando à pergunta pela origem (ou evolução) das ideias, inflecti o darwinismo sobre esta evolução, como paradigma explicativo, em http://www.webartigos.com/articles/19807/1/nota-sobre-a-origem-e-evolucao-das-ideias-uma-explicacao-darwiniana-ou-lamarckiana/pagina1.html. Mas contrapondo-o a um paradigma lamarckiano que enfatize antes alguma intervenção do hospedeiro de cada ideia - neste caso, a de evolução das espécies vivas - de modo que o que é retransmitido já não é exactamente o que terá sido recebido. Porventura será o caso de C. Darwin, que tendo recebido não só a ideia de evolução em geral, mas ainda economicamente a da selecção por competição intra-individual, ajustou-a de modo a explicar a adaptação e sobrevivência de espécies inteiras, passando o testemunho que Mendel completaria. Esse pormenor parece ser um ponto a favor da posição da ideia biológica darwinista numa evolução das ideias explicada lamarckianamente.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Da filosofia nos séc. XIX e XX

Uma passagem da conversa ontem com Filomena Ferreira lembrou-me este rascunho que guardei há poucos anos, quando o encontrei num ficheiro num arquivo que me preparava para apagar. Estava assim inacabado (mesmo sem ponto final), e não me lembro como pretenderia desenvolvê-lo, imagino apenas que o terei escrito num dia algo azedo...

Crónica do campeonato entre os Travessas e os Pracetas nos últimos 200 anos

Se se perguntar a uma ocidental culta (ladies first: comecemos por conjugar no feminino) pelos filósofos cujos nomes lhe são familiares, ou mesmo de cujas obras tem algum conhecimento, é provável que esta nossa amiga aponte autores como Platão e Aristóteles, se calhar S. Agostinho ou S. Tomás de Aquino, naturalmente Descartes e Kant, mas talvez já não chegue a reconhecer Popper, Austin...
            Com efeito, se ela se interessar por exemplo pela reforma das Nações Unidas é possível que tenha ouvido falar do projecto de Kant para a paz entre as nações.  E se for jurista deverá conhecer o imperativo categórico, ou a dificuldade teórica do postulado da liberdade humana.  Já se for antes chegada à matemática talvez reporte esse filósofo alemão ao intuicionismo, corrente segundo a qual os objectos matemáticos são postos pela mente que os considera.  Precisamente o contrário do que afirmam os “platónicos”, que postulam antes entidades abstractas como os números, cujas leis operativas são descobertas por essa ciência.  Segundo Karl Popper a escolha entre quaisquer posições científicas deve começar por aferir as respectivas capacidades de se sujeitarem a algum contra-exemplo.  Sendo porém o ensino das ciências em Portugal aquilo que é, não me admiraria que o nosso matemático (enfim, não esqueçamos os homens) não esteja à vontade nesses terrenos epistemológicos.  Já a Descartes conhece desde o 7º ou o 8º Ano de Escolaridade, concretamente pelos gráficos de eixos coordenados.  E se daí enveredou pelas ciências da vida ou pela psicologia então certamente saberá como António Damásio o reportou ao dualismo antropológico que separa o espírito (mente) do corpo, radicando naquele o conhecimento deste último assim como de tudo o resto.  Se tiver inclinações religiosas, críticas como a desse neurocientista talvez o levem então a contrapor à via introspectiva de S. Agostinho a descoberta tomista do Criador no conjunto das Suas criaturas, implementando um investimento espiritual nas ciências da Natureza que se filia na tradição aristotélica.  Aliás, se for biólogo, estará perfeitamente familiarizado com o trabalho de classificação que Aristóteles fundou.
            Não vale a pena prolongarmos a divagação, creio que as linhas antecedentes são já significativas – nomeadamente da razão pela qual S. Tomás chamava a esse último autor “o Filósofo”: é que este teólogo, que apenas fez uma perninha na filosofia com o opúsculo O Ente e a Essência, encontrava na obra aristotélica a maioria das concepções ou instrumentos teóricos que lhe permitiam o trabalho especulativo.  Ou seja, para S. Tomás assim como para aquela interlocutora, “filosofia” significa uma actividade e respectiva obra que interfere em muitas outras actividades e obras – assim como o resultado destas é significativo para aquela.  Pelo que na nossa conversa não usaremos o nome “filósofos” como equivalente a “Os Leões da Travessa da Saudade”.
Esta última expressão designa um grupo de compinchas que se reúne a cada quinze dias para jogar uma futebolada com os Águias da Praceta D. Sebastião, nuns encontros que não têm outras consequências além da boa disposição geral... e mais um bocado de colesterol pelo entrecosto com que recuperam do pontapé na bola.
            Com certeza que não temos no entanto que ficar reféns daquele significado da palavra “filosofia”.  Inclusivamente, se por acaso algum de nós gostar de churrasco mas não se der bem com ginásticas, poderá sugerir a um e outro clube que abram umas secções ditas “filosóficas”.  O nome significará então o conjunto dos encarregados, digamos, pelo tintol nas quinzenais almoçaradas, e que durante o futebol dos outros disputariam eles por exemplo a melhor interpretação da obra heideggariana – do primeiro ao último volume, seria a garantia de se deixar para os netos a bela tradição destas churrascadas.  A única diferença entre umas e outras secções é que os membros das filosóficas durariam menos do que os das futebolísticas – ao colesterol não contraporiam o chuto e o encontrão –, no resto... seriam ambas igualmente inconsequentes.
            É precisamente por essa inconsequencialidade que o nosso interlocutor inicial é capaz de não passar do séc. XVIII para diante.  Entretanto se for micaelense (e ocidental, e culto – conjunção que poucas vezes tenho tido o prazer de encontrar) poderá não lhe ser estranha, via Antero de Quental, a dialéctica hegueliana (séc. XIX), que se constitui como uma concepção radical do movimento.  Todavia, a não ser que o evolucionismo de Darwin ou a 2ª lei da termodinâmica de Clausius, Boltzmann... se não possam formular sem o recurso a uma dialéctica entre o ser e o nada intrínseca aos entes como tais – o que a avaliar pelas formulações correntes não me parece que seja o caso – a filosofia de Hegel será inexistente no horizonte natural.  É certo que o mesmo não se dirá do horizonte humano, nomeadamente da teoria hegueliana da história que estruturou a dialéctica materialista formulada por Marx.  Mas compreendamos essa senhora que amavelmente acedeu ao nosso interrogatório: se calhar por tanto se ocupar de coisas mais actuais como os condicionalismos culturais do projecto político-económico europeu, como os obstáculos religiosos à globalização comercial, etc., já nem se lembra da interpretação marxista dos processos históricos.  O que esta doutrina implicou já não existe no mundo dela.  Assim como muito menos subsiste o positivismo oitocentista no panorama científico desde meados do séc. XX para cá.  É por isso que no título desta crónica me estendi aos “últimos duzentos anos”.
            De então para cá o deserto filosófico parece-me claro.  Porventura a limitação dos meus conhecimentos em história das ideias tolhe-me a vista para mais umas quantas palmeiras.  Mas, ainda assim, não são estas que transformarão o areal numa viçosa encosta arborizada.  Dos heideggarianos já falámos.  Entretanto, para colaborarem com os colegas das secções de futebol, os Águias da Praceta D. Sebastião (ou vice versa, não se revoltem os sportinguistas que isto afinal não tem consequência alguma) proporiam aos adversários recontros também sobre os textos de Wittgenstein: não se procura marcar golos nem evitá-los, mas cultivam-se todas as formas de anular umas e outras jogadas – excelente escola de arbitragem.  Atenção porém ao conviva que, um pouco ao lado, poderá trazer à colação obras como a de J.L. Austin.  Se for linguista valer-lhe-á a pena poupar-se no vinho, pois à segunda-feira essa obra ajudá-lo-á no desenvolvimento da gramática – ou seja, já não é inconsequente, já não é um jogo.  Todavia, como disse atrás, parece-me que esta será bem mais palmeira solitária que árvore de bosque cerrado.
            Agora esses churrascos dominicais não passam duma bela fantasia.  A verdade, pelo contrário, é que as jogatanas entre os Travessas e os Pracetas foram erigidas, em nenhum lado mais do que neste país que somos, a travestis daquelas outras obras filosóficas que primavam pela consequencialidade.  “Travestis” apenas, que ninguém nas bancadas desse campeonato se esquece de que a filosofia é a ciência com a qual ou sem a qual se fica tal e qual.  De qualquer modo lá arranjaram um canto à mesa do Orçamento do Estado, e assim andam uns a jogar enquanto outros se têm que sustentar a si e mais ao entretenimento dos primeiros. Pelo menos não podemos esquecer

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Os EUA e o mundo - séc. XXI

Em 2, 3 e 4 deste mês o investigador do National Security Analysis Department, da Universidade John Hopkins, Michael Vlahos publicou em The Globalist - The power of global ideas a trilogia "American power and the fall of Modernity". Respectivamente, in:
Trilogia que praticamente começa com a pergunta: "Are we really heading toward a new Dark Age, or can we defend civilization and still help those left behind?" [Costuma chamar-se "Idade das trevas" (Dark Age) à Alta Idade Média (séc. V d.C - séc. VIII/IX d.C.), quando as populações europeias se afundaram no esquecimento da civilização Clássica (greco-latina) e ainda não tinham gerado a civilização Ocidental]. Anunciando o autor que a sua resposta é optimista, embora não aquela que a maioria das pessoas mais gostasse de ouvir. Além de servir como chamada de atenção para esses 3 artigos, que bem a merecem, o presente post servirá como achega para a discussão dessa resposta.
Sob o reconhecimento do papel arbitral do Estado-Nação na ordem mundial Moderna, o problema de que Vlahos parte é o do actual abandono, por essas instituições políticas, de 60% da humanidade. (Na 1ª parte de O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências assumi aproximadamente o mesmo ponto de partida). Ao que essas comunidades começam a responder organizando-se em outras instituições que não o Estado-Nação - Vlahos dá exemplos como o das grandes congregações muçulmanas e cristãs protestantes na África Ocidental, fortemente relacionadas com organizações religiosas não africanas enquanto o poder do Estado nacional naquela região é fraco, de modo que os Estados (não apenas africanos!...) deixam de ser árbitros, ou os agentes políticos supremos, para se tornarem em mais um tipo de jogadores entre outros. Especificamente sobre os EUA, a essa trilogia acrescento a pista que abri em Um crepúsculo da América?.
A parte II da trilogia ilustra essa tese com análises da história recente do México, Paquistão... sociedades tradicionalmente oligárquicas - ou seja, nas quais uma minoria açambarca o poder e privilégios - onde grande parte da população respondeu organizando-se em cartéis que produzem os estupefacientes procurados por americanos e europeus.
Enfim na parte III esse investigador da John Hopkins vaticina que "global networks will continue, but only for those who manage to 'make it' by the first decades of this early-21st century. Unable to aid the 60% left behind, humanity's prosperous minority - whether they admit it or not - is increasingly looking to its own defense and preserving the integrity of a smaller system that is still viable. Globalization is now all about a minority living defensively within a seething non-state majority."
Se bem lembro na síntese de Matthew Melko, há 40 anos, já se prevê a alta probabilidade desta reaproximação ao feudalismo - mas referi a bibliografia exacta dessa previsão antiga em O Nó do Problema Ocidental. O que logo de seguida procurei nesse ensaio, porém, e que se não encontra na trilogia a que me estou aqui a referir, foi, num 1º passo, a previsão teórica da sustentabilidade desse smaller system. Isto é, a previsão sobre a possibilidade da continuação da prosperidade da minoria. Possibilidade negada, a longo prazo, pelos estudos das Nações Unidas que lá cito. A fazer fé nos argumentos aí avançados, portanto, ou bem que nestas primeiras décadas do séc. XXI a prosperidade é alargada à maioria da humanidade, ou bem que, nas décadas seguintes, aquela minoria deverá ser arrastada pelos deserdados.
A esses argumentos macro-económicos, aliás, poderá juntar-se a sequência que Vlahos aponta: actual problema económico-financeiro; à sua saída, problema de fornecimento suficiente de energia; a uma sua saída, problema ecológico. (Já de seguida colocarei um post com uma confissão sobre as emoções que estas análises e consequentes previsões me sugerem...).
Mas voltando ao percurso daquele meu ensaio em correlação ao de Michael Vlahos, num 2º passo - que de resto se aplica tanto aos estudos económicos da ONU quanto às teorias geológicas empregues por este autor para prever a escassez de petróleo, etc. - há que perguntar pelo estado da arte nas ciências. Introduzi no referido ensaio a tese de que também estas se partem hoje numa crise paradigmática - o que aliás me sugeriu a pergunta se o diagnóstico de crise civilizacional afinal não se circunscreverá a reflexo de uma deficiência nos instrumentos teóricos usados, sem que (por enquanto!) exista qualquer problema para além do âmbito teórico...
Daí a necessidade civilizacional dum 3º passo: o da procura da origem das teorias, em ordem à superação daquela crise paradigmática.
Foi com a hipótese de uma resposta a esta pergunta, e com o programa de um seu desenvolvimento teórico-prático, que terminei esse ensaio. Não sei se será funcional. Mas procurar alguma resposta não há-de ser pior do que aceitar de vez o cenário previsto por Vlahos!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Uma heterodoxia leva a outra


Quando se tem tempo (por se ser dispensado duma reunião chata!) é assim: um gosto leva a outro, uma heterodoxia leva a outra...

Ponta de uma sugestão


Com o meu agradecimento a António Teves pela sua sugestão da 10ª Sinfonia de G. Mahler!

domingo, 20 de setembro de 2009

Uma civilização 2.0?... (2)

"Durant la fraction temporelle, infime à l'échelle de l'évolution humaine, de son existence, la prothèse Internet est pensée par analogie au monde sensible. Mais elle est appelée à devenir elle-même outil de pensée. Lorsque le monde sensible se concevra para analogie avec Internet, ce sera une nouvelle révolution" - Emmanuel Sander, "Comment Internet change notre façon de penser", Sciences Humaines, Nº 186 (Octobre 2007): 45.
Tinha ideia que tinha arquivado alguns textos sobre o tema do meu último post, já depois de o colocar fui procurá-los e encontrei este artigo de E. Sander que me sugere 2 desenvolvimentos de Uma civilização 2.0?.... O 1º é que a virtualização da nossa experiência sensível pode ir (e já leva!) mais longe do que eu sugeri ao referir a redução das 3 para as 2 dimensões (no écran), a redução do olfacto... à visão, etc. Vejam-se os hologramas, ou qualquer ligação das zonas cerebrais psico-auditivas... a um computador que emita os sinais eléctricos que o cérebro percebe como, por exemplo, som do restolhar de folhas cujo cheiro é induzido por outros sinais eléctricos... - trata-se, como o autor assinala, da muito discutida hipótese metafísico-epistemológica dos cérebros numa cuba (dramatizada pelo filme The Matrix).
Mas a também conhecida crítica a essa hipótese introduz o 2º apontamento: a própria concepção da situação de cérebros mantidos vivos artificialmente fora do organismo, recebendo sinais eléctricos como os acima mencionados, remete para além dela (situação) ao pressupor precisamente a exterioridade ao cérebro dumas cubas, computador, gerador eléctrico, etc. Ou seja, para se hipostasiar uma virtualidade de toda a percepção requerem-se outras entidades não virtuais.
Voltando às reflexões de Sander, com efeito perspectiva-se uma revolução se, depois e no sentido inverso da extensão metafórica da sensibilidade à internet na vivência de expressões como "visitar um site", "guardar um ficheiro numa pasta", "conversar no Messenger", etc., vier a internet invadir a nossa vivência sensível mediante técnicas como as acima apontadas. Referi-me a isto no último momento do post anterior. Penso porém que faltou um pormenor àquele autor:
A seguir a assinalar, e bem, como a internet anula mesmo as nossas tradicionais determinações do espaço e tempo (ex. o arquivo da Amazon é-nos mais próximo do que as estantes da livraria "mais próxima"), diz que "Internet conduit également à dissocier matérialité et possibilité d'action, qui semblaient consubstantielles jusqu'à peu" (op.cit.: 44). Mas apenas exemplifica com acções cuja iniciativa cabem ao utente, real, da internet sobre tudo o que nesta se disponha virtualmente. Ao menos um traço, pois, mantém uma diferença entre realidade e virtualidade: a capacidade de iniciativa - i.e. de originar uma novidade.
Uma alteridade que, em caso de tal revolução civilizacional, deixa em maus lençóis a civilização que a implemente. Em O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências lembro a lei de Murphy a todos quantos perspectivem um esquecimento da realidade numa redução deste termo a "virtualidade" - imagine-se o que aconteceria ao mundo virtual se o operador do gerador de electricidade se convencesse de que este seu estatuto era apenas mais um seu avatar entre outros no Second Life, e que a páginas tantas o resolvesse abandonar por não ser suficientemente emocionante...

Post Scriptum - não usarei um blogue para tais comunicações, mas neste caso apontarei que a metafísica tomista faculta os conceitos que enformam o que há numa irredutibilidade de realidade a virtualidade. A saber, o que pode haver (homens, avatares...) não se constitui simplesmente como uma possibilidade lógica (ausência de obstáculos a uma sua efectivação), antes é em potência - algo em acto tem em si o poder de se desenvolver num tal sentido. Este poder falta à virtualidade (ex.: os avatares não podem ter a iniciativa de tomar como virtualidade o gerador que a sua constituição como "avatares" pressupõe). Só a metafísica Moderna, que identificou "potência" a "possibilidade", se deixa envolver numa tal redução. Mas sobre isto veja-se o artigo de José Enes, "Dois universos ontológicos", in: Noeticidade e Ontologia, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1999: 165-189. Daí naquele meu ensaio eu ter remetido a resolução do problema ocidental para a discussão metafísica do séc. XIII para o séc. XIV.

sábado, 19 de setembro de 2009

Uma civilização 2.0?...

O exponencialíssimo crescimento na última década do número de blogues, redes sociais como o Facebook, arquivos de textos e outros recursos em PDF,... torna difícil, à primeira vista, aceitar que a Web 2.0 (internet que permite a todos que sejam tanto receptores quanto emissores de informação) não tenha impacto civilizacional. Isto porém remete para a questão do que se constitui como factor civilizacional...
Em O Nó do Problema Civilizacional - A dimensão das ciências - e-book que origina este blogue [v. sinopse na coluna ao lado, e Prólogo e Agradecimentos de "O Nó do Problema Ocid... - discriminei 3 níveis de factores: o mais imediato, e derivado, das acções privadas e públicas (como as políticas) que vão gerando e determinando os acontecimentos concretos, além de interpelarem o nível seguinte em busca de pistas resolutivas para os problemas que ali se colocam. O 2º nível tem um impacto civilizacional mediado pelo anterior, é o das ciências e das artes, de um lado, que propõem concepções do que há e do que pode haver, e, do outro lado, da ética, religião (às vezes das artes)... que propõem quais daquelas possibilidades se devem realizar, mobilizando-nos ainda para tal realização. E enfim o nível originário da proposta de como se há ou se pode haver enquanto tal, do que seja dever-ser, etc. - que na tradição que o Ocidente herdou dos Greco-latinos em boa parte é objecto da metafísica - facultando os modelos gerais ou abstractos, a determinar particularmente no 2º nível, em ordem à aplicação concreta no 3º.
A alteração pela internet mais evidente neste nível mais imediato mas menos determinante (apesar da interpelação problematizadora) deve ser a da enorme facilitação e aumento do alcance da comunicação. Um meu exemplo foi o da troca de mensagens, na minha recente e fugassíssima passagem pelo Facebook, com o pianista António Teves (com quem, como ele disse, conversara 1 só vez há largos anos), precisamente sobre a experiência de participação nestas redes sociais, e um eventual impacto cultural-civilizacional desta generalização do estatuto de emissor. Por certo nunca teríamos conversado sobre isso sem a mediação desta técnica. Mas esta mediação exponencia qualitativamente - i.e. no conteúdo - tais conversas, ou apenas desmultiplica o número destas? É certo que, se este número aumentar, poderá aumentar a probabilidade da irrupção de novidades qualitativas. Mas a ocorrência histórica destas em períodos curtos e populações reduzidas (v. Grécia, séc. V, IV a.C.), contra a estagnação em períodos longos e populações alargadas (v. fases da civilização Egípcia), mostra que não há uma correlação directa entre número de comunicações e propostas novas - pode-se ficar apenas com mais do mesmo.
O mesmo direi do impacto da Web 2.0 no 2º nível. Esse meu e-book e o presente blogue são 1 exemplo: com o fim da minha bolsa da FCT não pude concluir o projecto de Doutoramento que tinha em curso, abandonei assim o meio académico que, com o da comunicação social, constituíam os 2 meios tradicionais de emissão de informação/reflexão nesse 2º nível. A Web 2.0, porém, abriu à generalidade das pessoas um 3º meio de emissão. E um meio particularmente livre, pois, não se sujeitando as mensagens ao juízo prévio dos pares, a publicação não se reduz às ideias estabelecidas em cada momento. No entanto, por outro lado, quem é que lê e dá atenção ao quê nestas andanças? Os números de visitas aos blogues da meia dúzia de opinion makers socialmente reconhecidos, de visitas aos sítios das academias e jornais de referência, etc., são abissalmente diferentes dos números de visitas aos milhões de blogues de anónimos (como eu). Se calhar não estamos muito longe do universo comunicacional em que, de qualquer modo, apenas aqueles poucos tinham acesso à emissão...
É o impacto no 3º nível que mais me interpela - não na forma reflexiva, consciente, da metafísica tradicional, mas na forma vivida ingénua e quotidianamente: no Facebook, ou no Messenger, a acompanhar um nome vem uma fotografia, mas descartam-se as 3 dimensões do corpo físico, assim como outras sensações do outro além da visão que se tem dele; fica diferente a constituição deste interlocutor virtual. E muito para além diso, os avatares no Second Life constituem-se mesmo como outros-eu... Enfim, em geral a virtualização do que há (durante a utilização da Web) intervém em parte da resposta à questão originária pelo que há enquanto tal.
E o que creio ser uma novidade histórica: essa parte da resposta, a uma questão que sempre foi exclusiva de elites intelectuais, é agora dada pela população nas suas vivências quotidianas (naturalmente sem a referida capacidade para a reflexão crítica).
Mais ainda que as implicações económicas, democratizantes, de e-learning, etc. que a Web 2.0 possa ter no 1º nível - os resultados nem estão a confirmar as entusiásticas expectativas de há uns 10 anos... - me palpita que é essa virtualização, num 3º nível decidido no 1º, que mais deverá marcar a civilização ocidental, e com esta o mundo, para as próximas décadas.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Universos paralelos... e uma nova ciência

Devo reconhecer que se calhar o melhor é que a leitora (e o...) não perca tempo com este meu post e siga de imediato para o excelente A Debate in Cosmology: The Multiverse, in: http://www.pirsa.org/C08022!

À laia de introdução já crítica, porém, ressalto aqui a opinião do Nobel de física Steven Weinberg de que a hipótese do multiverso (aliás, duma multiplicidade de conceitos de multiverso!), independentemente do impacto cosmológico e físico que possa ter, começa logo por ter impacto epistemológico - logo tornar-se-á relevante para a química inorgânica, para a botânica... provavelmente mesmo para a microeconomia, a psicologia social...
Num passo atrás, o conceito: em alternativa à ideia de que a multiplicidade dos corpos celestes se reúnem num mesmo conjunto - o "universo" - logo desde Anaximandro (séc. VI a.C.), passando especialmente pelo grande metafísico contemporâneo David Lewis (Counterfactuals, Cambridge, MA: Harvard University Press, 1973; ou On the Plurality of Worlds, Oxford: Blackwell, 1986), se tem proposto a ideia de uma diversidade daqueles conjuntos - hipótese do "multiverso". [Sobre o estado da cosmologia aponto ainda uma obra que me tem sido útil, a do português Pedro G. Ferreira, The State of the Universe - A Primer in Modern Cosmology, Londres: Weidenfeld & Nicolson, 2006, que aborda esta hipótese nas pp. 291-2].
Ao que sei tal hipótese assume 4 formas: a mais simples (decorrente da teoria geral da relatividade) é a da justaposição de universos - dada a limitação da velocidade da luz (ou radiação que traz a informação a qualquer observador) e a expansão do cosmos, cada ponto de observação cósmica, como a Terra, será o centro duma esfera observável - 1 universo - para além da qual são postuláveis corpos em afastamento cuja informação acaba por não chegar àquele centro. Outra decorre da teoria da inflação cósmica - pouco depois do Big Bang o espaço-tempo terá sofrido bruscamente uma expansão aceleradíssima, inflação esta que não terá cessado em certas regiões do universo inicial, em novos Big Bangs que dão origem a universos correspondentes, etc., implicados (e já não justapostos) nos seus predecessores, cada qual com as suas próprias leis físicas. Uma 3ª forma aplica o critério da selecção natural a uma reprodução de universos a partir dos buracos negros de cada universo-progenitor (felizmente esta reprodução não será sexuada... nem quero imaginar o que seria viver num planetasinho em pleno coito cósmico!!). Enfim uma última forma decorre da tese da mecânica quântica de que uma partícula desenvolve todos os movimentos que lhe são possíveis até que um, ao ser medido, se torna real. Assim também haverá um universo no qual estou escrevendo este post e o leitor a lê-lo, outro no qual faltou a energia eléctrica...
Passo então em frente: um universo, ou justaposição de universos onde as leis da física são as mesmas para qualquer observador, onde "Deus não joga aos dados" (Einstein), etc., é apenas uma hipótese. Ao lado apresentam-se outras que aceitam a diversidade das leis físicas, porventura quebrando-se assim o determinismo nuns quantos universos... Ou seja, a redução epistemológica dos fenómenos a certos elementos básicos e respectivas regras de associação será porventura uma possibilidade teórica em alguns universos (por sinal, naquele que habitamos), mas nada mais do que isso. Será isso suficiente para a implementarmos ingénua e generalizadamente? Ou precisaremos antes de 1 critério que determine quando e onde o reducionismo funciona, quando e onde não funciona... e então que teoria física, psicológica, neurológica... há que aplicar em cada uma destas áreas?
[Em Emergentismo: unicidade ou complementaridade? introduzi esta questão do critério pelo lado da relação complexidade/simplicidade].

Do significado da avaliação escolar

Neste arranque de mais um ano escolar, volto a sair do tema deste blogue para apontar uma nota sobre o que possam significar 14's ou 19's. (Tanto se fala sobre avaliação... me parece que para se ficar por dizer tão pouco!).
Assumir que um estudante que apresente uma média de 19 valores é profissionalmente (o que inclui competências como relações inter-pessoais...) melhor do que um outro com média de 14 é pressupôr que:
- os currículos (mais particularmente os Programas) não só abarcam a totalidade dos conhecimentos e competências relevantes para a vida privada, social, e produtiva, como o fazem nas ponderações (proporção) apropriadas;
- os sistemas de avaliação são ajustados para o reconhecer;
- os professores têm condições práticas (tempo,...), competência, e disposição para implementar tais avaliações.
Se tudo isso se verificar, então um aluno de 19 - aquele que responde praticamente sempre como e quando o professor espera que o faça - estará perfeitamente preparado para o que o espera. Todavia, se por exemplo os Programas forem tão extensos que quase não deixem tempo para a iniciativa, e portanto para a divergência pessoal que daí decorre, então só os alunos que desenvolvem o que em psicologia se chama "pensamento convergente" (concentração num tema proposto, para o desenvolver) é que poderão aspirar ao 19. Juntamente com os alunos de pensamento convergente, mas não tão capazes quanto os anteriores, ficar-se-ão pelo 14 os alunos de "pensamento divergente" (originalidade na atenção a outras abordagens e temas que não os propostos).
Ou seja (ainda nesse exemplo), imaginemos que um responsável pela contratação de alguma organização precisa de alguém capaz de desenvolver um projecto que lhe seja destinado, e que tem 2 candidatos com 14 e 1 com 19. Sem dúvida deverá escolher este último. Mas se precisar antes de alguém para uma posição na qual possa ter que tomar a responsabilidade de inflectir o projecto inicial, e que assim seja capaz não só de perspectivar para além do que lhe é dado, mas ainda de criar soluções, logo à partida o candidato de 19 deve ser remetido para último lugar. Toda a atenção do contratante deve ser posta em deslindar se, entre os outros 2 candidatos, ambos são apenas menos capazes do que o anterior, ou se algum deles não recebeu essa nota pela razão de, uma vez consolidados razoavelmente os Programas implementados pelos professores, passava a dedicar-se a outros temas ou a outras abordagens. Se parecer ser este o caso, a organização contratará o candidato com 14.
Outros exemplos se podem arranjar não só para a condição dos currículos como para as outras duas. Mas o que importa reconhecer, creio, é o seguinte: basta que alguma dessas condições se não verifique regularmente, para que o significado da avaliação escolar não seja a de que um 19 é melhor do que um 14; antes, o 19 será melhor para umas funções, mas para outras alguns 14's são melhores (e importa distingui-los dos 14's apenas menos bons do que os 19's).
E depois ainda pode acontecer que a falha nessas condições seja tamanha que o significado profissional da avaliação escolar tenda para zero!... Num país cuja produtividade persiste em se não aproximar da média europeia esta possibilidade não pode deixar de ser considerada.

Prazer com livros

Na sequência duma das fotografias em Porto: Uma viagem pelo Ocidente, recebi esta apresentação - É a diferença entre uma máquina com lentes apropriadas, a intencionalidade que o objecto (a Livraria Lello) mais do que merece, e principalmente a arte do fotógrafo (deste outro, não eu!). Fica o prazer de desfrutar estas imagens - melhores do que as visões in loco por quem não saiba assim ver! - enquanto se não pode desfrutar ao menos o ambiente dessa livraria...
... Que merece esse nome, sem qualquer confusão com "venda de livros", etc., também pelo cunho pessoal, pelo gosto pelo livro que transpira de quem lá trabalha.

domingo, 13 de setembro de 2009

Da resistência portuguesa ao liberalismo

Ao assistir há bocado ao debate Sócrates vs. Ferreira Leite, (entre outras coisas!) ocorreu-me que se o destilado socialismo do 1º não espanta - será o estatismo possível no mundo globalizado e na nossa UE - é de registar a persistência do PSD em não assumir o liberalismo que o distinguiria do PS (e do CDS conservador). Das 3 grandes ideologias democráticas, desde (inclusivé!) o liberalismo que gerou o rotativismo e caciquismo do séc. XIX, passando pela secundarização dos liberais na I República, essa ideologia não pega em Portugal. Julgo que isso diz alguma coisa sobre a identidade que temos desenvolvido.
Mas sobre isso siga o leitor o seguinte link:
http://www.geert-hofstede.com/hofstede_portugal.shtml