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sábado, 3 de abril de 2010

Da guerra e da paz. O Tolstói de José Marinho - Seara Nova, 4/4

O outro Nº da Seara Nova que me ocorreu trazer aqui foi o 802, de 26 de Dezembro de 1942. Mais do que a propósito, saiu precisamente naqueles dias em que o VI exército alemão ficou cercado em Estalinegrado, e se começou a inverter a sorte da guerra. De duas outras guerras trata o artigo do filósofo português José Marinho naquele Nº dessa excelente revista, "Tolstoi e «Guerra e Paz»", pp. 83-85. Por mim (felizmente sem o pretexto doutra grande guerra), até no adjectivo de Marinho à arte do escritor russo é mais uma maneira de voltar a A Grande Arte - tributo a Tolstoi!
Posso já citar: "Como em toda a grande arte, a finalidade aqui não é a de nos ensinar qualquer coisa acerca do que se passou (...), mas simbolizar, num momento particularmente adequado para tal, a existência do homem em todos os seus múltiplos aspectos. Nem falta a este ponto uma subtil ironia quando o autor nos mostra que na paz se trava entre os homens e dentro de cada homem uma guerra não menos dolorosa, embora menos sangrenta, quando nos mostra, por outro lado, que no meio das dores e das atrocidades da guerra podem certos homens, num breve instante, abrir suas almas ao sentido daquela verdadeira e sublime serenidade em que tudo se compreende (...)" (p. 85). Se se logra apresentar o universal no singular, essa será então a "grande arte". Que neste caso nos dá conta de duas guerras: a sangrenta, entre comunidades, que normalmente ostenta esse nome... e que se constitui como um momento particularmente adequado para se apresentar uma outra guerra, esta sem sangue, entre quaisquer homens - mas especificamente no seio da mesma comunidade! - na antecâmara da que se trava no interior de cada homem.
E sobre esta última julga o nosso intérprete (3 parágrafos acima) que "propõe o romancista todo o seu tema. Os humanos vivem mesquinha e contraditoriamente a paz, e a guerra resulta de uma tentativa de escapar a essa mesquinhez e contradição. Mas a guerra, por seu turno, desnuda todo o absurdo, toda a miséria, toda a crueldade do homem. E dessa experiência regressa ele não menos desiludido, ao mesmo que antes fora". "Neste sentido se pode acrescentar que poucas obras existem tão profundamente pessimistas como Guerra e Paz" (p. 84). José Marinho reforça este juízo com a contraposição de Natacha e de Nicolau Rostov aos irmãos príncipes Maria e André, uma vez que os dramas interiores destes últimos não podem aspirar a melhor resultado do que a vida banal a que os 1ºs chegam sem maior esforço... Neste ponto, tanto quanto recordo a minha leitura adolescente - mas quanto ela me marcou! - dessa grande obra, mais o que a minha mulher me foi apontando quando a leu há poucos anos, não concordo com José Marinho. Ao contrário, há uma esperança, mas ela é custosa e, principalmente, diferente da que se visa no início (e durante quase todo o) percurso que a cumpre: tanto Natacha quanto o amigo de sempre com quem acaba por casar, Pedro, terminam pelo menos em parte libertos das fantasias e impulsos que os dominavam. Uma e outro não alcançam a densidade interior de Maria e de André, é certo, mas ao menos ultrapassam a tonteria em que viviam. E esta sua resolução interior faculta-lhes comportamentos mais produtivos, menos facilitadores da destruição, do que os comportamentos para que antes por si mesmos eram arrastados.
Essa processualidade que se constitui por pequenos nadas, mas que em cada passo a podem reorientar, parece-me aliás ficar reforçada com a teorização que Tolstói desenvolve nessa própria obra sobre a história à luz do, ou em analogia ao cálculo infinitesimal matemático (- hei-de lembrar-me de aqui voltar noutro dia).
Por agora termino com 2 apontamentos: 1) Também José Marinho ficou marcado pelo que a mim me impressiona nessa mundividência russa de Guerra e Paz ao Doutor Jivago: "pode comparar-se proveitosamente com o D. Quixote, de que dá, de múltiplas maneiras, visão e forma estética contrapolar. Na mais alta criação do génio ibérico, há uma personagem central simbólica em relação à qual toda a acção decorre e se ordena. Na mais vasta criação do génio eslavo, é impossível encontrar personagem simbólica adunadora, uma dessas figuras plenamente individualizadas das quais todo o essencial provém e a que tudo, em última análise, se refere" (p. 83). Ainda que o mais a que D. Quixote chega, acrescento eu, está mesmo muito próximo do que Marinho reconhece em Natacha...
2) "Ainda hoje muitos homens pensam na Europa e fora dela (...) que o Renascimento e tudo quanto se lhe seguiu significam a definitiva libertação do homem das ilusões místicas, (...). Ora toda a grande arte, e este é o significado da obra de Tolstoi, especialmente de Guerra e Paz, sugere que, concebido nos termos em que o vemos, tal desígnio leva os homens à imbecil satisfação e à certa perda" (p. 84). Na maior parte do ensaio que dá o nome a este blogue - e portanto nas entrelinhas da maioria destes posts - o que tenho andado a procurar sugerir não é mais do que isso... Assim eu o tivesse sabido dizer com a grande arte de José Marinho!

segunda-feira, 15 de março de 2010

Divagações arquitectónicas

Há tempos uma amiga arquitecta, a propósito dum meu post sobre arquitectura, desafiou-me a trazer aqui mais vezes  essa área - não sou competente para isso (quer dizer, ainda sou menos do que em outros terrenos que por isso me tenho atrevido a pisar...). Mas a verdade é que a arquitectura distingue-se de outras artes desde logo por, ao contrário destas que podem restar ignoradas em livrarias, museus, salas de concerto... aquela é impositivamente pública. Convivemos com ela diariamente, queiramos ou não, consciente ou inconscientemente. É pois sempre coisa nossa, por menos que saibamos dar conta disso.
Sabendo da previsão de chuva para o fim de semana, levei assim comigo The condition of Postmodernity, de David Harvey (Oxford: Blackwell, 1990 - creio que já há trad. port.), para ler aleatoriamente nesses 2 dias num hotel de traço vincadamente modernista. Por sinal, acrescentado por um arquitecto tio daquela minha interlocutora. Mas o projecto original é do Eng. Manuel António de Vasconcelos (1907-1960). Como se vê na foto da entrada, nele se destacam as linhas horizontais, curvas que evitam as arestas (v. esquinas arredondadas, corrimão); a elegância cosmopolita duma escadaria teatral, do conforto discreto de madeiras nobres mas combinadas com metais próprios às tecnologias modernas (ex. grandes dobradiças nas portas das áreas comuns, candeeiros, todo o mobiliário da sala de jantar creio que desenhado também por Vasconcelos...); ainda reforçando esse internacionalismo (cosmopolita), v. elementos marítimos ou navais como o óculo ao fundo na foto com um aquário, ou os corrimões e varandas lembrando os convés de navios - que cruzam os mares internacionais entre as terras particulares! O depuramento do traço - despido de enfeites - deixa de fora quase qualquer particularismo cultural (não dei conta de outro além do telhado regional, diferente dos balcões horizontais modernos). E mesmo a natureza é incorporada nessa vivência harmónica, onde tudo tem um lugar (v. foto da sala de jantar).
A questão colocada ao modernismo, como Harvey (Chap. 1) realça, incide precisamente aí: tudo ter um seu lugar. O ideal iluminista de uma ordem universal, muito bem exemplificado pelas ciências modernas, cuja descoberta e assunção prática conduziria a um progresso de todos, enfrenta a questão da legitimação dessa ordem, e concomitantemente de quem terá a legitimidade de a proclamar e implementar... Autores como Adorno e Horkheimer vieram denunciar que aquele projecto de libertação, afinal, na prática constitui mais uma versão da opressão de uns poucos sobre muitos outros. Mesmo autores como Habermas, que mantêm o projecto moderno, adoptam-no em versões fracas.
Daí o regresso a alguma consideração de tradições históricas particulares, nas colagens pós-modernas. Mas, precisamente, que "tradições" são essas ainda? Lembrando-me do exemplo dum outro hotel em S. Miguel, que num seu jardim interior e no mobiliário evoca o Extremo Oriente, o que é que aí se conserva, e se transmite de geração em geração numa tradição particular? A grande disneylandia da arquitectura pós-moderna - em centros comerciais que põem lado a lado colunas gregas e decorações regionais, etc. - me parece propor também, com o modernismo, a desvinculação de alguma tradição cultural, mas já não pela ultrapassagem destas em ordem a um plano universal, antes pela desmultiplicação, em cada sítio, de inúmeras daquelas tradições - creio que é a mais subtil perversão do projecto romântico...
Entretanto a tese geral de D. Harvey é que as grandes concepções sobre o homem, etc., são mediadas para a sua aplicação nomeadamente económica por determinações espaciais e temporais, onde se destacam as arquitectónicas. Por exemplo o uso moderno da perspectiva, terá sugerido a organização vertical das empresas fordistas na II Revolução Industrial, ao passo que a desmultiplicação de perspectivas e de planos irreconciliáveis (Picassso, David Salle...) terá sugerido depois a organização mais horizontal e segmentada no pós-fordismo.
... Mas 1 fim de semana não me chega para mais do que balbuciar a pergunta (e pressupondo provisoriamente aquela tese): por onde andaremos nós hoje? Sem aqueles movimentos contínuos - horizontais, curvos, sem arestas - sem aquela evidenciação confiante dos novos materiais, mas também sem materiais e formas de uma tradição determinada, o que nos propomos, o que sugerimos, com a determinação que fazemos arquitectonicamente do espaço que habitamos?

quarta-feira, 10 de março de 2010

Da responsabilidade ética da arte

Diversos artistas - ou talvez mais ainda: comentadores, historiadores da arte... - têm pretendido que a arte é independente da ética. As obras de arte serão assim meras propostas ou aberturas de possibilidades ocultas - mais no caso da arte representativa - ou até meras produções, porventura abstractas, de beleza, senão mesmo de quaisquer impressões emocionais (nojo, etc., etc.). Mas, se se aceita definir a arte pelas consequências das obras que são supostas constituírem-na, a questão será se se deve suspender essa definição nos efeitos emocionais directos, ou se não se deverá considerar os comportamentos que por sua vez decorrerão daquelas emoções (até porque sem a evidência destes é difícil identificar as ditas emoções!).
O documentário - cujo trailer incorporo a seguir - sobre a envolvência de um filme nazi alerta para a possibilidade dumas consequências, eticamente significativas, a larga escala - o estímulo que Goebbels esperava que produzisse nos militares que teriam que o ver. E, principalmente, não para a possibilidade mas para a efectividade doutras consequências, estas privadas: as da evidente incapacidade dos descendentes do realizador não se colocarem, de alguma forma, em relação às opções do seu pai ou avô, isto é, de se lhes referirem com a neutralidade que aparentemente seria devida sobre o que compromete apenas quem as fez.
Ainda que o artista seja apenas co-responsável pelos eventuais efeitos razoavelmente directos das suas obras, porventura será também um artificialismo desligá-lo inteiramente destes.



Lamento, mas não sei como se ajusta o videoclip a este template!
Para seguir a discussão sobre esse documentário e o seu tema v. http://blogs.nybooks.com/post/420372304/himmlers-favorite-jew .

sexta-feira, 5 de março de 2010

Atenção, cinema, e Teoria do caos

Encontrei a relação que o título indica no recente artigo de J. Cutting, J. DeLong e C. Nothelfer, disponível em http://pss.sagepub.com/content/early/2010/02/04/0956797610361679.full.pdf+html. Em síntese, à abordagem (psico-analítica, marxista, feminista...) à história do cinema dividindo-a num período clássico antes de 1960, e noutro daí para cá, os autores contrapõem uma abordagem cognitivista em 3 períodos - antes de c. 1955, daí até c. 1980, e o actual - em função da duração (e pareceu-me que do modo de transição) dos shots que compõem as cenas dos filmes.
Tendo vindo a diminuir essa duração, no 3º período ela aproxima-se duma relação matemática - análise de Fourier, padrão 1/- que tem sido reconhecida em diversos fenómenos físicos, e que os autores sugerem que estruturará também a mente humana no tempo e no poder de prestarmos atenção. Ou seja, o cinema tem-se aproximado duma regra mental desta nossa capacidade, e essa regra, por sua vez, constitui mais uma aplicação entre tantas outras duma relação puramente formal que é objecto da análise matemática.
Esta disciplina da matemática estuda a estrutura formal dos processos ao longo do tempo. O estudo de casos que estes investigadores levaram a cabo, tendo levantado evidências empíricas da aproximação da duração dos shots àquele padrão de ondas matemáticas, propõe-se assim como um reforço à estratégia - v. Teoria do caos - de conceber os fenómenos (físicos ou mentais) como se estes emerjam ao longo do tempo em função dum qualquer atractor; isto é, como se os seus diversos elementos se vão organizando e sedimentando progressivamente em conformidade a um modelo que todavia resta oculto, e é nessa sedimentação que os fenómenos ganham forma ou se tornam no que são.
Mais, portanto, do que distinguir os elementos básicos seja na física, seja na economia,... seja no cinema, e as respectivas regras de composição, importará determinar o processo formal pelo qual quaisquer daqueles fenómenos se constituem. Da correlação hierárquica entre estas estratégias reducionista e emergentista, aqui lembrada em Emergentismo: unicidade ou complementaridade?, parece voltarmos com este caso do cinema e da atenção à pura e simples substituição da 1ª pela 2ª...

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Livros electrónicos (e-books) e acesso à informação

O post de Gary Becker http://uchicagolaw.typepad.com/beckerposner/2010/02/are-e-readers-the-beginning-of-the-end-for-books-becker.html, mais os respectivos Comentários (a que apenas dei uma vista de olhos) e o post de resposta por Richard Posner, especulam sobre as consequências no acesso à informação e à reflexão deste novo salto na tecnologia da edição que é a dos e-books. E que eu não haveria de deixar de abordar aqui uma vez que este blogue se integra precisamente nessa tecnologia.
A alguém da minha geração - que li e estudei (enfim... o pouco que o fiz!) em papel - parece óbvio que os e-readers não substituirão os volumes impressos em relação à facilidade de manuseamento para consultas, avanços e recuos, e para sublinhados e notas nas margens, e, mesmo que a tecnologia praticamente anule essa diferença, não substituirão os bons e velhos livros no tacto do objecto a explorar, no cheiro misterioso do papel fechado há muito, no conforto das lombadas que não de plástico... Mas não me precipitaria a estender esse juízo às gerações que substituíram a futebolada de rua pelas play-stations, as conversas cara a cara pelos chats ao mesmo tempo que falam ao telemóvel, etc.
Além dessa cautela, talvez o confronto entre a edição em papel e a electrónica deva ser perspectivada mais em complemento do que - como tenderam Becker e Posner - em alternativa. Como disse, este blogue é um exemplo: o ensaio que traz este título está disponível electronicamente; pode ser alugado nesse formato, e não sei se comprado também (para down load); mas pode ainda ser encomendado (no Brasil) em formato de papel, numa edição afinal semelhante à da Oxford University Press, a um preço muito reduzido (visto que não precisa compensar eventuais sobras em armazém). Ou seja, o formato do e-book, mesmo para um ensaio que o leitor porventura gostará de anotar nas margens, começa por se constituir como um outro acesso de consulta inicial que não o dos escaparates das livrarias ou bibliotecas. Mas depois não exclui a leitura em papel, aliás facilita-a no preço, ainda que a atrase (mantendo-a no formato digital do aluguer) no tempo da encomenda e entrega por correio. A complementaridade entre papel e digitalização verifica-se ainda nesta possibilidade de se associar um blogue a um livro, para alargar o horizonte deste último, para eventuais trocas de ideias entre leitores e autor, etc.
Em suma, se a escrita constituiu porventura o maior salto em frente do progresso humano, se a imprensa constituiu uma revolução por estender a comunicação escrita além da minoria que poderia aceder a manuscritos raros, inclino-me a apostar que os e-books apenas potenciarão a herança de Gutenberg.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Ciências duras, ciências moles, e cultura

Estava marcada para ontem no Porto, no âmbito do ciclo de conferências "Novas respostas a novos desafios" promovido pela Fundação Mário Soares, a conferência "Novas respostas da ciência" de Sobrinho Simões, na qual o Director do IPATIMUP se propôs defender "que é necessário evoluir de uma perspectiva científico-tecnológica para "uma muito mais cultural, política e, no limite, até religiosa". Frisou que acredita que é a cultura que perspectiva a ciência e não o contrário." (v. http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=39787&op=all).
Justificando: "como somos cada vez mais egoístas, mais mimados como sociedade, acostumados a ter tudo, a ter bem-estar e a gastar muito, estas respostas da ciência, por estranho que pareça, se calhar estão a acelerar os desafios que são mais globais: o da demografia, o do clima, o do esgotamento dos recursos naturais"Este é o condicionamento ético das tecno-ciências. Mas há outro:
As ciências modernas desenvolveram-se sobre uma concepção mecanicista da realidade material, podendo esta assim ser decomposta em elementos, associados segundo certas relações, normalmente formuláveis matematicamente. Ao contrário, a concepção medieval era mais organicista, cada parte (qual órgão) só se compreende e subsiste a funcionar num organismo, dotado de alguma espontaneidade (livre do espartilhamento das relações matemáticas). Veja-se a passagem da alquimia para a química. Mas ainda no séc. XX houve quem propusesse um funcionalismo para compreender por exemplo a mente. Ou seja, na base de quaisquer formulações científicas ou aplicações tecnológicas, potenciando mas também orientando ou enquadrando estas últimas, encontram-se concepções gerais de "objecto", "causalidade", etc. Além dos "controlos éticos" que Sobrinho Simões afirmou ser necessário introduzir, há que implementar a constante reflexão crítica, metafísica e epistemológica, sobre aqueles conceitos de base.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

No Declínio do Império Americano... Alors, peut-être je viendrai chez toi chauffer mon cœur à ton bois

Em 1986 Denys Arcand filmou Le Déclin de l'Empire Américain, sobre a redução das vidas de 4 historiadores - se bem me lembro, que tão a propósito um deles reconhecia não ser(em) um Braudel... - aos prazeres imediatos da cama e mesa. Afinal a menorização epicurista condenada por Strauss e pelos islamitas no post anterior...
Aos declínios civilizacionais os investigadores fazem suceder a invasão pelas civilizações contíguas - cf. O Nó do Problema Civilizacional - A Dimensão das Ciências, Cap. 3. Em 2002 Arcand voltou às mesmas personagens, com os mesmo actores, para filmar Les Invasions Barbares: um dos amigos tem uma doença terminal, os amigos e a mulher reúnem-se numa despedida (o videolip abaixo começa com a despedida da filha por webcam), e para a morte assistida que o filho lhe arranjara.
Até que, na descolagem do avião que os leva de regresso a casa, a nora do falecido, sob os primeiros acordes de L'Amitié, encosta a cabeça ao ombro do marido e lhe diz "Je t'aime"... enquanto a voz de Françoise Hardy continua para lá do avião que desaparece no horizonte, ressaltando do genérico branco em fundo preto que suavemente passa num culminar, num remate que dá o sentido global afinal aos séculos de história que o avião deixou para trás. (Apetece-me dizer que este será o mais comovente genérico da história do cinema! - mas eu dessa história conheço quase nada!).
Letra: Jean-Max Rivière; música: Gérard Bourgeois; 1965

Beaucoup de mes amis sont venus des nuages
Avec soleil et pluie comme simples bagages
Ils ont fait la saison des amitiés sincères
La plus belle saison des quatre de la terre.
Ils ont cette douceur des plus beaux paysages
Et la fidélité des oiseaux de passage
Dans leurs cœurs est gravée une infinie tendresse
Mais parfois dans leurs yeux se glisse la tristesse.
Alors, ils viennent se chauffer chez moi
Et toi aussi tu viendras.
Tu pourras repartir au fin fond des nuages
Et de nouveau sourire à bien d'autres visages
Donner autour de toi un peu de ta tendresse
Lorsqu'un autre voudra te cacher sa tristesse.
Comme l'on ne sait pas ce que la vie nous donne
Il se peut qu'à mon tour je ne sois plus personne
S'il me reste un ami qui vraiment me comprenne
J'oublierai à la fois mes larmes et mes peines.
Alors, peut-être je viendrai chez toi
Chauffer mon cœur à ton bois.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A Grande Arte - tributo a Tolstoi

Na sequência do post anterior, apenas para ficar vendo (já agora, reparando também nessa forma tão diferente da actual de reportagem em filme!):

Da crise das humanidades e do seu desafio

Voltando a Jerome Kagan sobre The Three Cultures (v. Do determinismo mental e da medição do fluxo sangu... ), agora no capítulo 5 dedicado à situação actual das humanidades (da literatura, filosofia hermenêutica, historiografia narrativista... às artes), confesso que desta feita me parece algo desconexo e diria até menos desenvolvido, ou certeiro do que creio poderia ser. Em todo o caso assinalarei aqui 2 notas de Kagan sobre essa situação, e sobre o que ainda assim as humanidades sugerirão hoje sobre esta civilização.
a) Por comparação às ciências sociais e humanas, e ainda mais às ciências naturais, matemática e tecnologias, as humanidades não merecem hoje consideração pública. Este psicólogo americano julga que isso se deve i) à valorização da produção e da prática, nas quais os agentes das humanidades não se encontram directamente envolvidos; ii) à TV 24h/dia (acrescentemos a internet, as redes sociais...) que substituiu a função de alargamento dos horizontes antes confiada à literatura; iii) ao relativismo pós-moderno, que, recusando quaisquer critérios de validação externos a cada discurso em avaliação, não permite distinguir algumas obras como particularmente merecedoras de atenção; e iv) as ciências sociais e depois as neurociências começaram a abordar temas das humanidades mediante experiências controladas e já não pela intuição ou pela interpretação de discursos.
b) Todavia, aponta Kagan, esse desprestígio constituirá um empobrecimento na medida em que "humanists perform several critical funtions. They remind the society of its contradictions, articulate salient emotional states, detect changing cultural premises, confront their culture's deepest moral dilemmas, and document the unpredictable events that punctuate a life or historical era" (op.cit.: 231).
Pela minha parte confesso que, se por um momento sinto a pena pelo desaparecimento do que durante um certo período foi notável - no que não será mais do que a emoção perante o tempo e o fim ou a morte - e seguramente que as humanidades ocidentais o foram desde os Gregos aos grandes romancistas de meados do séc. XX, logo no momento seguinte penso que é próprio ao tempo que sucumba o que perdeu a vitalidade, de modo que se as humanidades deixaram de oferecer o que outrora lhes fez merecer a consideração pública então é justo que sejam abandonadas (a não ser pelos historiadores do período em que floresceram). Em troca, se retomarem essa oferta, simplesmente não correrão perigo de extinção.
Ora não vejo que essas critical functions não possam ser implementadas por vias mais verificáveis do que a tais intuição e interpretação de textos. Diria pois que, se a isso a si próprias se reduzirem as humanidades, é justo que desapareçam.
Directamente contra a pós-modernidade apontada no ponto (iii) da alínea (a), suponho porém que as humanidades se constituem ainda por um traço processual além de quaisquer outros funcionais, ou de quaisquer objectivos a que se proponham: o de (em linguagem metafísica medieval) reunirem o universal e o singular. Ou seja, de cada vez numa situação nova, exemplificarem as grandes questões da existência humana numa personagem, num contexto social e ambiental determinado, num conjunto de opções, comportamentos e consequências. Ainda há dias, conversando sobre isto com a Maria João Cavaco, ela observou como a literatura americana (do norte e do sul) apresenta personagens frente ao espaço aberto, onde se joga, numa simplicidade às vezes crua, o enfrentamento pessoal da vida e da morte. E lembrámos Hemingway, Jack London, Guimarães Rosa... e depois o Mestre: Tolstoi.
Os pós-modernos negam, claro, essa possibilidade da singularidade se transcender na exemplificação dum universal... Não serei eu a lamentar que por esse caminho as humanidades sigam para as prateleiras do museu da história civilizacional.

sábado, 16 de janeiro de 2010

O Mundo a Seus Pés

No balanço dos últimos 2 posts, dedicados a 1 dos 2 filmes que apontei como favoritos no meu perfil (como para toda a gente, mais haveria...), trago aqui uma referência ao outro- infelizmente esquecido de televisões e videoclubes.
Mais do que a intriga, é tão contemporânea - e tão própria ao novelo que tento assinalar neste blogue! - a forma de perspectivas cruzadas desse filme de Orson Welles (realizador, co-produtor, co-argumentista, actor), Herman J. Mankiewicz (co-argumentista), e Gregg Toland (fotografia).
Aliás julgo que num duplo cruzamento: por um lado, o das perspectivas narrativas dos diversos testemunhos sobre Kane. Por outro lado, o das imagens em 1º plano com as imagens de fundo, igualmente focadas, cabendo ao espectador a hierarquização que permita uma linha narrativa... ou várias... mas então, a cada momento, qual delas seguir?...
"What's the real truth about (...)? I wish you come to (...) and decide for your self".

Mas melhor do que essas minhas palavras, aqui ficam as de Welles, mais o seu sentido de humor, e as surpresas de imagem...

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Por um 2010... com sentido! (2/3)

No post anterior abordei a questão do sentido da vida mediante a biologia - que visa em geral o que nasce e morre, se alimenta, se reproduz... Mas isso talvez pouco diga especificamente, não só à vida humana, mas ainda a cada pessoa nas suas situações concretas. Para esclarecer um sentido que oriente as opções que temos de fazer nessas situações poderá ser mais significativa a abordagem filosófica - refiro-me à que analisa as expressões dos nossos comportamentos, etc.
Para esta outra abordagem um bom utensílio será a colectânea de AAVV, Viver para Quê? Ensaios Sobre o Sentido da Vida (org. e trad. Desidério Murcho, Lisboa: Dinalivro, 2009). A qual reúne ensaios argumentando pela falta de sentido, outros pela relatividade subjectiva de qualquer sentido, e outros por alguma objectividade de um sentido. Uma vez que o inquérito que aqui apresentei em Da filosofia e das suas tendências actuais sugere que a maioria dos filósofos actuais tenderá a aceitar a 3ª posição (realismo moral: 56,3%) - e também porque é a minha! - destaco os 2 ensaios que a representam: Susan Wolf, "Felicidade e sentido: Dois aspectos da vida boa" (pp. 157-186); Neil Levy, "Despromoção e sentido na vida" (pp. 187-205).
Em síntese, Wolf propõe que "vidas com sentido são vidas de entrega activa a projectos de valor" (p. 161). A quem tender a concordar, aqui fica o pedido de ajuda intelectual da filósofa: "Dado que não tenho qualquer teoria do valor com a qual possa provar a coerência do conceito ["projectos de valor (em contraste com outros projectos)"] ou refutar todos os desafios cépticos, nada mais posso fazer senão reconhecer a vulnerabilidade da minha concepção do interesse próprio quanto a este aspecto" (p. 167).
E quem assim se dispuser a resolver aquela vulnerabilidade teórica será logo confortado pela tese de Neil Levy! A saber, os referidos "projectos de valor" são constituídos por actividades que vão redeterminando os seus fins à medida que os realizam, como a procura da verdade (ex. numa ajuda a S. Wolf), da implementação da justiça, a criação artística... fins estes que por sua vez servem de referências últimas às restantes escolhas e comportamentos. Cabe depois a cada um, na sua circunstância e segundo as suas apetências, escolher em geral o tipo de projecto que lhe for mais adequado, e concretamente em qual poderá trabalhar.
Poder-se-á talvez objectar que, se as noções de "verdade", "justiça", "belo"... forem totalmente relativas ou subjectivas, então cada um encontrá-las-á onde isso lhe der prazer, e caímos numa teoria hedonista sobre o interesse próprio (que zela pelo esclarecimento de um sentido da vida, v. Wolf, p. 158). Bom, também agora o que 1º se poderá dizer a quem se dispuser a resgatar alguma objectividade daquelas noções - confirmando as teses desses 2 filósofos contemporâneos contra os hedonistas - é que estará assim experimentando, em pessoa, a tese de que o sentido se constrói no trabalho pela verdade...

sábado, 2 de janeiro de 2010

Um 2010... com sentido! (1/3)

São suficientes os votos que fazemos com as Saúdes! do Ano Novo? Ou seja, ao enfrentarmos a morte acharemos que a nossa vida terá valido se a tivermos passado com poucos achaques?... Se for a vida de uma galinha acredito que sim. Sendo uma vida humana, talvez à saúde se acrescente "felicidade" - mas o que significa esta palavra? Será o que sente quem viveu numa casa confortável, conviveu com muitos conhecidos a quem chamou "amigos", foi num Verão a Cuba, fez um cruzeiro duma semana pelo Mediterrâneo, e teve carros superiores a utilitários?...
É isso que faz a vida humana valer a pena se "felicidade" = soma de "prazeres" (cf. Crise económico-financeira, transhumanismo... e a ... ), e se o sentido da vida, isto é, aquilo que esta visa, for uma sobrevivência prazenteira.
Em relação à vida em geral - não especificamente a humana - segundo o professor de biologia e de física Steven Rose ("Qual é o sentido da vida?", in: H. Swain (org.), Grandes Questões Científicas, Lisboa: Gradiva, 2007, pp. 357-363) os biólogos dividem-se hoje entre os que reduzem a vida ao ADN e às suas instruções na produção de proteínas em vista à replicação de moléculas com o mesmo código genético, e os que subordinam a vida à emergência de organizações que asseguram a vida e lhe desenvolvem o potencial. Como diz Rose - defendendo a 2ª posição - "é este conceito dinâmico de desenvolvimento (...) que repõe o organismo, e não o gene, no centro do palco da vida"; "os organismos constroem-se a si próprios - criam as suas próprias trajectórias - a partir da matéria-prima fornecida pelos genes e pelos seus múltiplos níveis ambientais, desde o celular até ao social" (op. cit.: 362). A questão chave, penso, é a de como se decide o comportamento a desenvolver em cada encruzilhada crucial da vida - se este funcionário deste escritório, entre ser leal com aquele colega e traí-lo para facilitar esta promoção, optar pela 1ª ou pela 2ª opção por causa do código genético, então podemos conceber reducionistamente esse acontecimento; se, ao contrário, em algum dos tais níveis ambientais (logo por exemplo o da consciência) ocorrer alguma novidade em relação aos componentes do nível inferior, obrigamo-nos a uma concepção emergentista.
A alternativa entre esses 2 paradigmas científicos não se resolve apenas em ordem às 3 pedras no sapato reducionista que assinalei no post anterior.
Continuando o avanço em 2009 que escolhi para esse último post, aí está um bom voto para 2010: que possamos dar um passo significativo na resposta à pergunta pelo sentido da vida!

sábado, 28 de novembro de 2009

"There's somebody coming and there's nothing you can do about it..."

Da destruição - criadora? - até à referência edipiana... na actual indefinição civilizacional mais ainda do que há 50 anos:

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Notícia

Estão começando hoje de manhã (até 4ª feira, 24/11/09) as 5as. Conferências de Filosofia e Epistemologia do Instituto Piaget, em Viseu. Trago aqui a notícia, não só por eventualmente ainda poder interessar a alguém que as possa assistir, mas mais pela relevância dos temas - alertando para possíveis notícias destas comunicações - e, mais ainda, pela recusa do provincianismo:
"Provinciano" é aquele que se constitui por referência a um outro, que deste modo o 1º coloca num centro de atenção - a "capital" (pela minha parte, confesso que em Portugal nunca vi mentes tão provincianas quanto em Lisboa!...). Reconhecer, em troca, que temas como os seguintes valem em qualquer sítio, para quaisquer pessoas, pelo que importa sempre abordá-los, sabendo embora que se irá mais ou menos longe conforme os recursos disponíveis, é a atitude de quem põe os pés no chão, e faz deste chão a terra que habita.

Fica a Apresentação destas Conferências em http://30anos.ipiaget.org/conferencias-internacionais-epistemologia-filosofia/apresentacao/ :
Reunindo especialistas de diferentes áreas e convidando-os a produzir as suas próprias reflexões acerca da temática da condição humana a partir das obras do neurocientista António Damásio, do filósofo Espinosa, do pensador multifacetado George Steiner e de um dos mais importantes escritores portugueses do Século XX, Miguel Torga, as 5as Conferências de Filosofia e Epistemologia do Instituto Piaget procuram contribuir para a abertura de novas perspectivas de reflexão e investigação interdicisciplinar e nos campos específicos da neurologia, da filosofia e dos estudos literários e culturais.
Temas como:
a relação corpo/mente;
a relação homem/natureza (ou liberdade/necessidade);
a relação finitude/transcendência;
a relação entre a razão e os sentimentos e emoções;
são hoje reequacionados pelo progresso das neurociências, que avançam hipóteses e respostas que modificam concepções tradicionais do humano, com evidentes consequências existenciais, epistemológicas , éticas, culturais e civilizacionais.
Esses mesmos temas, e as incertezas, questões e angústias com que são vividos pelo homem contemporâneo atravessam as análises literária, cultural e civilizacional de Steiner e a obra literária de Torga.
E talvez, como António Damásio procurou mostrar, seja na obra de Espinosa, mais do que na de qualquer outro dos grandes filósofos, que podemos encontrar hoje os conceitos e as intuições que nos permitem enquadrar essas transformações da visão do humano e as perguntas e incertezas por elas geradas.

sábado, 7 de novembro de 2009

Entre o enigma do belo... e os da matemática


 Porque é que esta mulher (Sharon Stone) "é bela"? - O notável (além da beleza dela, claro!) é que o uso da forma verbal "é" parece estar empiricamente confirmado. A saber, contra a ideia batida - no seio desta nossa já tradicional cultura pós-moderna... - de que o juízo de beleza humana é subjectiva e culturalmente condicionado, verificam-se antes denominadores comuns nesse juízo transversais a quaisquer culturas, como a simetria do rosto, e a minimização do seu desvio padrão (do afastamento às proporções médias).
Como argumentam J.-Y Baudouin e G. Tiberghian, "Female facial attractiveness was investigated by comparing the ratings made by male judges with the metric characteristics of female faces. Three kinds of facial characteristics were considered: facial symmetry, averageness, and size of individual features. The results suggested that female face attractiveness is greater when the face is symmetrical, is close to the average, and has certain features (e.g., large eyes, prominent cheekbones, thick lips, thin eyebrows, and a small nose and chin). Nevertheless, the detrimental effect of asymmetry appears to result solely from the fact that an asymmetrical face is a face that deviates from the norm. In addition, a factor analysis indicated that averageness best accounts for female attractiveness, but certain specific features can also be enhancing. (Resumo do artigo à venda em http://www.sciencedirect.com/science?_ob=MImg&_imagekey=B6V5T-4D9DBD3-1-3&_cdi=5795&_user=10&_orig=search&_coverDate=11/01/2004&_sk=998829996&view=c&wchp=dGLbVlz-zSkzk&md5=996952d13ff46d87d7e8588da4dd1135&ie=/sdarticle.pdf). Ou seja, sob, e envolvendo, pequenos factores culturais e subjectivos, o grande critério do juízo estético, pelo menos no que ao corpo humano diz respeito, é matemático.
Matemática e beleza - aqui voltamos aos enigmas desta ciência. Um biologista simples dirá: estamos geneticamente programados, ao cabo da evolução da espécie em curso, a acharmos belo o que obedece a proporções matemáticas. "Simples"... ou "simplista", porque a questão será então: a que propósito a selecção natural nos obriga ao custo extra de obrigar, ou de tender para tais proporções? O que é que estas têm de tão importante para a sobrevivência da espécie que justifique o custo da sua selecção, ou seja, o não aproveitamento de espécimes funcionais, capazes de reprodução, mas assimétricos...?
Deixa para a entrada em cena dos platónicos: a palavra "é", ou "existe", etc. compete (senão primeira ao menos legitimamente) a ideias, ou conceitos, e também a puras relações como as matemáticas. Depois, tanto tudo o que há as manifesta tão perfeitamente quanto lhe for possível, e funcionará, sobreviverá, será "bom" nessa medida! (o belo é o distintivo disso) - veja-se a alegoria "da linha" em A República de Platão. Quanto um dos tipos de entes que há, o ser humano, revela a capacidade de remontar até essa realidade 1ª - veja-se a alegoria "da caverna" na mesma obra. Projecto teórico porém que logo Aristóteles criticou de forma que até hoje resta difícil ultrapassar - ou seja, resta difícil sustentar aquela ajuda platónica ao simplismo biologista na explicação do juízo estético... E todavia os dados empíricos recolhidos em artigos como o acima citado estão aí...
Lá tenho que usar outra vez a frase "Demasiada areia para a minha camioneta"! Entretanto vem isto a propósito do meu almoço de Outubro (que por acaso teve lugar já neste mês) com o João Paulo Constância. Chamou-me ele a atenção para uma recente conferência de uma investigadora sobre a condição matemática da composição musical de Mozart. Nomeadamente, do modo como este músico clássico aplicava, aos sons no tempo, os paradigmas das transformações de uma figura no espaço - como a rotação e a translação, nas quais a simetria é determinante. Ora a teoria clássica da dedução subsume estas transformações a axiomas puros, aplicáveis também a números, a saber, os axiomas do fecho, da comutatividade, da associatividade, da identidade, e da inversão - v. M.S. Lourenço, Teoria Clássica da Dedução, Cap. 1, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, pp. 23-65.
Música para... já nem diria ouvidos, mas antes pensamentos platónicos! Nessa linha deixo em seguida o link para a notícia da conferência que creio ser aquela que o meu amigo me mencionou. Com os votos de bom fim de semana aos platónicos (mas que se não animem ao ponto de esquecerem aquelas também velhas objecções...). E que aqui fica como pedra no sapato para nós outros, aristotélicos, ou aristotélico-tomistas... e a condenação a mais um fim de semana de trabalho, de perguntas, e de apenas humilde satisfação.
http://www.cvtv.pt/imagens/index.asp?id_tag=3&id_video=70

domingo, 1 de novembro de 2009

Equilíbrio... intenso (3)

Pratiquei artes marciais, com uma intensidade que buscava o equilíbrio, antes da Madalena nascer e dum meu joelho ceder. Depois pratiquei moderadamente - também porque nesse meu equilíbrio esta moderação foi o lugar próprio a essa prática. Até que há uns 2 ou 3 anos o 2º joelho cedeu. Desde aí resta-me admirar, e invejar (!), a perfeição de gestos como estes.
(Que se não engane o leigo com a imagem de bonequinha chinesa - tente agarrá-la algum homem de mais de 100kg., que se ela acelerar um pouco a avançada com a mão direita espalmada no peito dele o projecta a uns bons 4 ou 5 m.!)

Devo acrescentar que me parece que a proposta oriental de vivência do equilíbrio não é idêntica à proposta ocidental - de Aristóteles ao tango e à equitação clássica - mas pelo menos cada uma destas propostas poderá reconhecer na outra algo que também ela visa.

Equilíbrio... intenso (2)

O Mestre Nuno Oliveira é frequentemente julgado o maior equitador em dressage do séc. XX. Não sei julgar tal. Mas o que me lembro da minha iniciação à equitação faz-me tirar o chapéu (se o tivesse) a este equilíbrio entre ele e a sua montada, ao que percebo, a despeito de algumas ajudas com as pernas e sinais com as rédeas, basicamente graças à colocação do peso do cavaleiro - em uníssono ao do cavalo, mas, ao mesmo tempo, um instante à frente em direcção a onde o movimento do animal pode evoluir sem roturas ou sobressaltos!
Um outro equilíbrio, este, que ao contrário de dormente potencia para além do que à partida teria sido possível.

Equilíbrio... intenso (1)

Gosto de pensar que Aristóteles teria ficado fascinado pelo tango!
No penúltimo post referi a sua opção pelo justo, e meio, termo. Os pseudo-alternativos precipitam-se a classificar esse ideal como frouxo, meias-tintas... A ideia grega era precisamente o contrário: cada coisa terá o seu lugar natural, o qual é contornado pelos respectivos limites, para quanto mais perto destes se derrapar (a partir do interior) mais perto do disforme, da degeneração se ficará. E é naquele lugar que se encontra também o poder de sustentação de cada coisa.
Diversidade e harmonia, ordem e paixão... O que o poderá realizar mais do que o tango?! (Além de que esta bailarina...)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Consumo, e cultura

O filósofo e sociólogo Gilles Lipovetsky veio agora a Aveiro participar do colóquio "Consumo - que futuro?", onde voltou a apresentar a sua tese sobre a Era do hiperconsumo - como caracteriza o actual momento civilizacional, e cuja síntese remeto para Alexandra Silva em http://ppresente.wordpress.com/textos/a-sociedade-do-hiperconsumo/. Em geral, enfim, considera que desde as décadas de 1980/90 "felicidade" foi reduzida a "soma de prazeres" (cf. Crise económico-financeira, transhumanismo... e a ...), e que o critério se tornou em absoluto o consumo, que se quer sempre mais e diferente, ao ponto de até os pobres de hoje se constituírem como consumidores, ainda que apenas potenciais! 2 Observações:

A) Em plena globalização também cultural, o projecto de vida aí denunciado é a razão da minha cautela (para não dizer pessimismo...) esta semana em Para a conferência de Copenhaga... ou há 20 anos em "Da esperança na salvaguarda da Natureza" (14/04/1.... Pois, ainda para mais em democracias, não será possível implementar políticas sociais e económicas que não satisfaçam o homo consumericus de que fala Lipovetsky. E a absolutização - que já não apenas prioridade - do valor do consumo anula na prática qualquer limitação da oferta, e portanto da produção que recorre à delapidação de quaisquer recursos naturais como a água potável, o ar não poluído, etc. A actual civilização global, que assumiu o valor do consumo a que o Ocidente chegou depois de na Modernidade ter valorizado o fazer, assemelha-se pois a um gigantesco Titanic... cuja única esperança é que todos os cientistas que há décadas apontam o iceberg do equilíbrio ecológico global estejam enganados. Esperança que o homo consumericus herdou e desenvolveu do seu pai homo faber, pois se para o fazer o saber já pouco importava, então para o consumir, e num consumo em função do prazer imediato, isso (o saber) já nem se compreenderá o que seja!
1ª Consequência resolutiva: se o problema é cultural, não é dos políticos (tanto menos quanto mais dependerem das respectivas populações) que se poderá esperar uma solução consistente. Apenas os agentes culturais a poderão lançar... para depois se enredarem na questão retórica que aqui apontei em Da influência cultural e da retórica... mas também...!

B) Para a terapia cultural atrás apelada, valerá a pena voltar a pensadores das primeiras décadas do séc. XX como Martin Heidegger, Ortega y Gasset, etc., que nessa altura denunciaram o lançamento deste homo consumericus - Veja-se o modo inautêntico de existir, segundo aquele filósofo alemão, e a característica que este logo lhe reconheceu de sede da novidade pela novidade - qualquer coisa como o primo de Harry Potter perante não a qualidade dos presentes, nem sequer a sua quantidade, mas tão só a progressão numérica desta quantidade em relação à do ano anterior (!). Há muito, pois, que as elites culturais vinham percebendo e alertando para o que hoje vivemos... ou seja, para as suas consequências amanhã ("amanhã" não significa para os nossos trisnetos, significa nesta próxima década, mais ainda na seguinte...). Nem por isso no entanto a civilização ocidental, e depois o mundo, deixou de evoluir nesta direcção. Uma pois de 2, senão ambas: ou, tendo essas elites acertado no movimento em curso, não lhe perceberam a raiz, pelo que não atacaram a cabeça da serpente mas tão só uma outra parcela do seu corpo; ou até se aperceberam do que estaria causando esse movimento em curso, mas faltou-lhes a capacidade retórica de se fazerem ouvir - lembremos-nos aliás da "rebelião das massas" de que se queixou Ortega... Num nosso regresso ao estudo dessas obras de há quase 1 séc., julgo que devemos atender a estas 2 pistas.