quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Da influência cultural e da retórica... mas também da racionalidade

Recebi ontem o Nº 209 da Sciences Humaines, com o Dossier sobre retórica - não a arte de manipular, menos ainda a verborreia (=diarreia do verbo!), mas a arte de convencer. Neste sentido, a retórica é um tema imprescindível numa reflexão - como aquela em que este blogue se insere - sobre a recuperação duma civilização em crise, ou pelo menos o aproveitamento pessoal do melhor da tradição dessa civilização. Mais precisamente, no âmbito da questão da influência das minorias sobre as maiorias - pois tem sido sempre das 1ªs, e do êxito da sua influência, que têm dependido as resoluções de crises civilizacionais. Na nota 4 de O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências escrevi assim que "uma resposta aos ditos problemas terá hoje então que ser dupla: de um lado, é necessário um ressurgimento das elites – entenda-se: daqueles que contribuem para a resolução consistente de problemas reais. De outro lado, será necessário que estas pessoas (...) logrem atingir o público suficiente para a constituição da massa crítica que implemente as soluções assim propostas… Tivessem os deuses castigado Hércules nos dias que correm, e contentar-se-iam que ele cumprisse apenas este trabalho!".
A propósito duma notável jornalista, política... açoriana da 1ª metade do séc. XX, anotei em http://www.webartigos.com/articles/20696/1/nota-a-influencia-das-minorias-sobre-as-maiorias---o-caso-alice-moderno/pagina1.html os factores gerais que hoje mais se reconhecem àquela influência. Em particular sobre a retórica, acrescento uma nota que temo ser frequentemente esquecida pelos opinion maker, pelos políticos... actuais:
Depois de Aristóteles ter tratado essa disciplina sistematicamente pela 1ª vez, e depois de todos os tratos de polé que foi recebendo (às vezes justamente...), ela foi recuperada no séc. passado por Chaïm Perelman - a leitura do seu Traité de l'Argumentation - La Nouvelle Rhétorique vale mesmo muito a pena. Desde então a teoria reconhece 3 dimensões à capacidade de convencer: o ethos do emissor, isto é, a credibilidade moral de quem propõe algo; o pathos dos receptores, isto é, as emoções com que os receptores seleccionam e interpretam as mensagens propostas; e o logos da proposta, isto é, a sua validade lógico-empírica.
A prática contemporânea porventura parece dar todavia razão a Platão - que desprezava e condenava a retórica por esta se reduzir efectivamente à dimensão do pathos, no seio da qual só por sorte (e sem querer!) se chegará a algo que se possa chamar "verdade". Daí à definição actual por Michel Meyer dessa disciplina como a arte de aproximar os interlocutores, de lhes dissolver as distâncias, vai um passo - veja-se a análise da comunicação por Barack Obama nas pp. 40, 41 no referido Dossier (no seguimento aliás do que aludi em O nó do problema ocidental: Sinais do Império)... Penso no entanto que há uma limitação irredutível nesta orientação de Meyer, ou do platonismo, que nos impõe a velha definição aristotélica:
Para que possa ter havido qualquer eventual aproximação dos diferentes, e para que possam vir a haver outras, é preciso que os interlocutores tenham disponibilidade de tempo, política... é preciso que exista o local físico, os meios técnicos... para a comunicação, etc. Tudo isso se diminui, eventualmente até ao grau zero como nos colapsos civilizacionais, se aquilo que os receptores estiverem emocionalmente dispostos a ouvir - e portanto os discursos que os aproximarem dos emissores - for contraditório com esses factores, com essas condições de possibilidade da comunicação. O caso da oposição entre Alcibíades e Tucídides sobre a estratégia na Guerra do Peloponeso, que mencionei no artigo cujo link se encontra naquele anterior post, é um exemplo clássico desta asneira. A retórica, portanto, queira-se ou não, tem uma dimensão racional - aquela na qual um valor negativo do discurso significa que este está a violar as suas próprias condições de sustentabilidade.
Importa pois avaliar sempre os discursos também nesta dimensão. Importa pois denunciar todos aqueles que porventura mereçam um elevadíssimo valor nas dimensões do pathos, como o de Alcibíades, e até do ethos, mas um valor negativo na do logos, onde Tucídides se ancorou.  Mais do que insuficientes, eles são traiçoeiros (mesmo que não seja esta a intenção do emissor).

1 comentário:

  1. Há bocado não tive tempo para apontar que Perelman chamou a atenção que a retórica não visa propriamente uma verdade reconhecida pela razão, mas tão só o que é razoável. Ou seja, não se exige uma certeza teórica absoluta, mas tão só o que faz mais sentido dado o tempo disponível para a discussão, as informações recolhidas, etc. Ex.: não haveria forma de provar a verdade da proposta de Tucídides, mas esta era claramente mais razoável do que a de Alcibíades, e terem optado por esta, segundo o pathos não segundo a razão, levou à derrota de Atenas.
    Entretanto creio que o ensino secundário em Portugal está a atender a esta retórica razoável (nomeadamente em Português e em Filosofia). Já o ensino superior - nas universidadesinhas para onde vai quem não consegue entrar noutras - sei que é recorrente o discricionarismo, o argumento da autoridade, o psicologismo, etc. Estão claramente atrasadas em relação ao secundário. Não sei o que se passa na educação escolar brasileira, nem nos países africanos lusófonos. Mas o prestígio internacional de algumas universidades do Brasil leva-me a pensar que ao menos essas deverão ter uma cultura que fará implementar a dimensão racional da retórica.

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