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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Ciências duras, ciências moles, e cultura

Estava marcada para ontem no Porto, no âmbito do ciclo de conferências "Novas respostas a novos desafios" promovido pela Fundação Mário Soares, a conferência "Novas respostas da ciência" de Sobrinho Simões, na qual o Director do IPATIMUP se propôs defender "que é necessário evoluir de uma perspectiva científico-tecnológica para "uma muito mais cultural, política e, no limite, até religiosa". Frisou que acredita que é a cultura que perspectiva a ciência e não o contrário." (v. http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=39787&op=all).
Justificando: "como somos cada vez mais egoístas, mais mimados como sociedade, acostumados a ter tudo, a ter bem-estar e a gastar muito, estas respostas da ciência, por estranho que pareça, se calhar estão a acelerar os desafios que são mais globais: o da demografia, o do clima, o do esgotamento dos recursos naturais"Este é o condicionamento ético das tecno-ciências. Mas há outro:
As ciências modernas desenvolveram-se sobre uma concepção mecanicista da realidade material, podendo esta assim ser decomposta em elementos, associados segundo certas relações, normalmente formuláveis matematicamente. Ao contrário, a concepção medieval era mais organicista, cada parte (qual órgão) só se compreende e subsiste a funcionar num organismo, dotado de alguma espontaneidade (livre do espartilhamento das relações matemáticas). Veja-se a passagem da alquimia para a química. Mas ainda no séc. XX houve quem propusesse um funcionalismo para compreender por exemplo a mente. Ou seja, na base de quaisquer formulações científicas ou aplicações tecnológicas, potenciando mas também orientando ou enquadrando estas últimas, encontram-se concepções gerais de "objecto", "causalidade", etc. Além dos "controlos éticos" que Sobrinho Simões afirmou ser necessário introduzir, há que implementar a constante reflexão crítica, metafísica e epistemológica, sobre aqueles conceitos de base.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Do determinismo mental e da medição do fluxo sanguíneo

Recebi há dias a obra de Jerome Kagan, The Three Cultures: Natural Sciences, Social Sciences, and the Humanities in the 21st Century, Nova Iorque: Cambridge University Press, 2009 - muito provavelmente um dos raros livros que desde há uma dezena de anos lerei da 1ª à última página!...
Mas para já abri-o no parágrafo sobre as 3 assunções fundamentais das ciências naturais modernas - (1) nenhuma explanação científica é permanentemente verdadeira; (2) todos os fenómenos podem ser reduzidos a processos materiais; (3) não há valores éticos nos fenómenos naturais.
A 2ª assunção coloca a questão determinismo vs. indeterminismo - ou como tenho aqui colocado, porque creio que mais frutuosa, reducionismo vs. emergentismo (este último conceito talvez permita explicar o que "indeterminismo" deixa em aberto).
Kagan argumenta contra o postulado determinista, e (até como psicólogo) centra-se na questão duma redução dos fenómenos psicológicos aos processos cerebrais (a que me referi ex. Cérebro (e mente): da quantidade à qualidade!...  ). Parece-me útil aqui assinalar os 9 problemas que encontra a um dos principais métodos de investigação que tem sugerido essa redução, a da medição do fluxo sanguíneo em zonas do cérebro uma vez sujeita a pessoa a certos estímulos. Supostamente a variação desse fluxo indiciaria a localização da função mental, própria ao comportamento observado, na zona do cérebro em que fosse (essa variação) medida, mas:
1º) esse fluxo indicia o input numa zona neuronal, mas não tanto o seu output;
2º) não há uma relação linear entre a quantidade de sangue que advém a uma zona e a quantidade de actividade neuronal aí;
3º) a magnitude da alteração do fluxo só é detectável 5 ou 6 s. depois da consciência do estímulo;
4º) só quando há bastante irrigação sanguínea é que o fluxo é significativo da actividade neuronal;
5º) a expectativa, ou ausência dela, do estímulo afecta a quantidade do fluxo após o estímulo;
6º) métodos diferentes de aferir a quantidade do fluxo obtêm resultados diferentes;
7º) áreas com aumento do fluxo podem não ser necessárias aos fenómenos psicológicos em causa;
8º) as instruções do experimentador ao sujeito da experiência condicionam a quantidade do fluxo;
9º) a reacção cerebral a um estímulo responde às diversas propriedades físicas deste - tamanho, cor, brilho... - sendo difícil distinguir o que responde a quê.
Ou seja, a metodologia condiciona a obtenção de quaisquer teses. Seja no protocolo que se tenha estabelecido para as experiências controladas sobre os fenómenos em causa, seja nos aparelhos utilizados, seja nas categorias teóricas de interpretação dos resultados.

Uma defesa da redução da mente ao cérebro deverá pois responder aos problemas que se coloquem aos métodos que essa defesa tenha usado... Pelo menos tão bem quanto uma equivalente defesa do dualismo (que hipostasia a mente ou espírito para além do cérebro) lograr responder aos problemas que se lhe coloquem!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Para o esclarecimento do "transhumanismo", e para um seu enquadramento ético

Apenas 2 sugestões:
Uma, da leitura do post http://transhumanismo.blogs.sapo.pt/15728.html de Rui Barbosa (no blogue aqui assinalado ao lado).
A outra, do enquadramento ético a tais desenvolvimentos tecnocientíficos por Gilbert Hottois (O Paradigma Bioético, trad. P. Reis, Lisboa: Salamandra, 1992) - que apontei na nota 24 do ensaio que este blogue prolonga precisamente para esse enquadramento. Distinguem-se 3 atitudes: a liberal, a restritiva, e a intermédia. A 1ª, de acordo com o chamado imperativo técnico, defende que se faça tudo o que for tecnicamente possível - para realização dum homem concebido como homo faber. A 2ª defende antes que se respeite sempre uma Natureza - a postular. A 3ª, que na linha do filósofo Hans Jonas propõe que a intervenção técnica seja orientada, e limitada, não só pela salvaguarda da vida, mas ainda, no caso humano, pela salvaguarda do livre arbítrio.

A propósito, esse investigador disse-me há dias que estão a tentar lançar uma Rede Nacional de Investigação sobre o Transhumanismo. Aqui deixo algumas palavras da minha resposta:
"Concordo 200% com a sua proposta duma Rede Nac. Invest. Transh., e pelas razões que aponta mais a sinergia que poderia trazer no plano da investigação de ponta e do pensamento de longo prazo - tradicionalmente deficitários na nossa cultura do desenrascanço e das vistas curtas (foi preciso vir uma inglesa educar os filhos para que estes, uma vez no Governo e na "empresa pública" que promoveu a navegação atlântica, fizessem os Descobrimentos que ainda hoje gostamos de tomar como nosso 1º factor de identidade!)".

sábado, 14 de novembro de 2009

Mas... há um problema civilizacional?!

Sob esta etiqueta tenho colocado uma série de posts preocupados, senão pessimistas sobre o futuro próximo ou a médio prazo. Não podemos porém deixar de nos lembrarmos que outras expectativas serão possíveis - visto o futuro ser o que está em aberto. Tenho a impressão que é geralmente o caso dos promotores do "transhumanismo" - v. http://transhumanismo.blogs.sapo.pt/ . Por sinal já me referi aqui a uma obra sobre essa expectativa de um tempo em que o homem natural dominará tecnicamente esta sua natureza, e a transformará segundo um interesse que escapa a esta última (Crise económico-financeira, transhumanismo... e a ... ), e o juízo do autor será negro. Mas além do link para aquele blogue (no qual sei que Rui Barbosa acolhe bem qualquer participante), aponto aqui a recensão de outro livro recente que ilustra esse optimismo: Aldo Schiavone, Histoire et Destin, Paris: Belin, 2009.
O autor - por sinal um conhecido estudioso da evolução das civilizações - reconhece 2 grandes revoluções que facultaram o sucesso da espécie humana na Terra, e perspectiva uma 3ª. A 1ª (se bem entendi) terá sido a passagem do nomadismo recolector ao sedentarismo agrícola - em O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências (p. 49) refiro de passagem a datação de vestígios dessa época que sugerem a anterioridade de símbolos religiosos aos instrumentos daquele organização sócio-económica, pelo que tal revolução terá começado por ser cultural. A 2ª grande revolução foi a industrial. Uma e outra terão sido provocadas por uma inteligência (a que se desenvolveu com o homo sapiens sapiens) capaz de determinar um projecto, e desenvolver uma técnica para usar o mundo dito natural em ordem ao cumprimento daquele. Segundo o autor, aliás, "natureza" (como entidade transcendente ao homem, etc.) expressa apenas a resistência que os 1ºs homens encontravam no mundo externo, não podemos porém reconhecer-lhe hoje qualquer imutabilidade, ou essência eterna e assim sagrada que houvesse que respeitar, dada a historicidade que lhe descobrimos desde muito antes de aparecer o homo erectus.
E agora a mesma inteligência preparar-se-á para uma 3ª revolução: a da aplicação da genética, biónica, robótica, etc., ao ser humano, o qual se transformará assim em ordem à erradicação de doenças, envelhecimento e mortalidade (!)... Além disto tudo, talvez assim se adapte o ser "pós-humano" à escassez de água potável, de diversos nutrientes, etc. que as previstas alterações climáticas deverão acarretar - no ensaio acima referido tive o cuidado de mencionar autores como B. Lomborg, que sustentam que, mais fácil do que inverter essas alterações, será adaptarmos-nos a elas.
Intuitivamente, me parece difícil que, se estas alterações ocorrerem nas próximas 2 ou 3 décadas, tais alterações tecnológicas de toda uma espécie até aqui apenas natural ainda venham a tempo de resguardar a maioria dos indivíduos dessa (nova) espécie. Todavia a velocidade da expansão da transformação comunicacional desde os primeiros telemóveis e o começo da aplicação da internet à comunicação aberta (não apenas militar nos EUA) foi de tal ordem que deixo um ponto de interrogação sobre aquela intuição.
Mas como Schiavone bem apontará (convergindo aqui com o autor que referi naquele post de Julho), a questão não é apenas técnica. Antes disso, é esse o nosso projecto?

domingo, 20 de setembro de 2009

Uma civilização 2.0?... (2)

"Durant la fraction temporelle, infime à l'échelle de l'évolution humaine, de son existence, la prothèse Internet est pensée par analogie au monde sensible. Mais elle est appelée à devenir elle-même outil de pensée. Lorsque le monde sensible se concevra para analogie avec Internet, ce sera une nouvelle révolution" - Emmanuel Sander, "Comment Internet change notre façon de penser", Sciences Humaines, Nº 186 (Octobre 2007): 45.
Tinha ideia que tinha arquivado alguns textos sobre o tema do meu último post, já depois de o colocar fui procurá-los e encontrei este artigo de E. Sander que me sugere 2 desenvolvimentos de Uma civilização 2.0?.... O 1º é que a virtualização da nossa experiência sensível pode ir (e já leva!) mais longe do que eu sugeri ao referir a redução das 3 para as 2 dimensões (no écran), a redução do olfacto... à visão, etc. Vejam-se os hologramas, ou qualquer ligação das zonas cerebrais psico-auditivas... a um computador que emita os sinais eléctricos que o cérebro percebe como, por exemplo, som do restolhar de folhas cujo cheiro é induzido por outros sinais eléctricos... - trata-se, como o autor assinala, da muito discutida hipótese metafísico-epistemológica dos cérebros numa cuba (dramatizada pelo filme The Matrix).
Mas a também conhecida crítica a essa hipótese introduz o 2º apontamento: a própria concepção da situação de cérebros mantidos vivos artificialmente fora do organismo, recebendo sinais eléctricos como os acima mencionados, remete para além dela (situação) ao pressupor precisamente a exterioridade ao cérebro dumas cubas, computador, gerador eléctrico, etc. Ou seja, para se hipostasiar uma virtualidade de toda a percepção requerem-se outras entidades não virtuais.
Voltando às reflexões de Sander, com efeito perspectiva-se uma revolução se, depois e no sentido inverso da extensão metafórica da sensibilidade à internet na vivência de expressões como "visitar um site", "guardar um ficheiro numa pasta", "conversar no Messenger", etc., vier a internet invadir a nossa vivência sensível mediante técnicas como as acima apontadas. Referi-me a isto no último momento do post anterior. Penso porém que faltou um pormenor àquele autor:
A seguir a assinalar, e bem, como a internet anula mesmo as nossas tradicionais determinações do espaço e tempo (ex. o arquivo da Amazon é-nos mais próximo do que as estantes da livraria "mais próxima"), diz que "Internet conduit également à dissocier matérialité et possibilité d'action, qui semblaient consubstantielles jusqu'à peu" (op.cit.: 44). Mas apenas exemplifica com acções cuja iniciativa cabem ao utente, real, da internet sobre tudo o que nesta se disponha virtualmente. Ao menos um traço, pois, mantém uma diferença entre realidade e virtualidade: a capacidade de iniciativa - i.e. de originar uma novidade.
Uma alteridade que, em caso de tal revolução civilizacional, deixa em maus lençóis a civilização que a implemente. Em O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências lembro a lei de Murphy a todos quantos perspectivem um esquecimento da realidade numa redução deste termo a "virtualidade" - imagine-se o que aconteceria ao mundo virtual se o operador do gerador de electricidade se convencesse de que este seu estatuto era apenas mais um seu avatar entre outros no Second Life, e que a páginas tantas o resolvesse abandonar por não ser suficientemente emocionante...

Post Scriptum - não usarei um blogue para tais comunicações, mas neste caso apontarei que a metafísica tomista faculta os conceitos que enformam o que há numa irredutibilidade de realidade a virtualidade. A saber, o que pode haver (homens, avatares...) não se constitui simplesmente como uma possibilidade lógica (ausência de obstáculos a uma sua efectivação), antes é em potência - algo em acto tem em si o poder de se desenvolver num tal sentido. Este poder falta à virtualidade (ex.: os avatares não podem ter a iniciativa de tomar como virtualidade o gerador que a sua constituição como "avatares" pressupõe). Só a metafísica Moderna, que identificou "potência" a "possibilidade", se deixa envolver numa tal redução. Mas sobre isto veja-se o artigo de José Enes, "Dois universos ontológicos", in: Noeticidade e Ontologia, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1999: 165-189. Daí naquele meu ensaio eu ter remetido a resolução do problema ocidental para a discussão metafísica do séc. XIII para o séc. XIV.

sábado, 19 de setembro de 2009

Uma civilização 2.0?...

O exponencialíssimo crescimento na última década do número de blogues, redes sociais como o Facebook, arquivos de textos e outros recursos em PDF,... torna difícil, à primeira vista, aceitar que a Web 2.0 (internet que permite a todos que sejam tanto receptores quanto emissores de informação) não tenha impacto civilizacional. Isto porém remete para a questão do que se constitui como factor civilizacional...
Em O Nó do Problema Civilizacional - A dimensão das ciências - e-book que origina este blogue [v. sinopse na coluna ao lado, e Prólogo e Agradecimentos de "O Nó do Problema Ocid... - discriminei 3 níveis de factores: o mais imediato, e derivado, das acções privadas e públicas (como as políticas) que vão gerando e determinando os acontecimentos concretos, além de interpelarem o nível seguinte em busca de pistas resolutivas para os problemas que ali se colocam. O 2º nível tem um impacto civilizacional mediado pelo anterior, é o das ciências e das artes, de um lado, que propõem concepções do que há e do que pode haver, e, do outro lado, da ética, religião (às vezes das artes)... que propõem quais daquelas possibilidades se devem realizar, mobilizando-nos ainda para tal realização. E enfim o nível originário da proposta de como se há ou se pode haver enquanto tal, do que seja dever-ser, etc. - que na tradição que o Ocidente herdou dos Greco-latinos em boa parte é objecto da metafísica - facultando os modelos gerais ou abstractos, a determinar particularmente no 2º nível, em ordem à aplicação concreta no 3º.
A alteração pela internet mais evidente neste nível mais imediato mas menos determinante (apesar da interpelação problematizadora) deve ser a da enorme facilitação e aumento do alcance da comunicação. Um meu exemplo foi o da troca de mensagens, na minha recente e fugassíssima passagem pelo Facebook, com o pianista António Teves (com quem, como ele disse, conversara 1 só vez há largos anos), precisamente sobre a experiência de participação nestas redes sociais, e um eventual impacto cultural-civilizacional desta generalização do estatuto de emissor. Por certo nunca teríamos conversado sobre isso sem a mediação desta técnica. Mas esta mediação exponencia qualitativamente - i.e. no conteúdo - tais conversas, ou apenas desmultiplica o número destas? É certo que, se este número aumentar, poderá aumentar a probabilidade da irrupção de novidades qualitativas. Mas a ocorrência histórica destas em períodos curtos e populações reduzidas (v. Grécia, séc. V, IV a.C.), contra a estagnação em períodos longos e populações alargadas (v. fases da civilização Egípcia), mostra que não há uma correlação directa entre número de comunicações e propostas novas - pode-se ficar apenas com mais do mesmo.
O mesmo direi do impacto da Web 2.0 no 2º nível. Esse meu e-book e o presente blogue são 1 exemplo: com o fim da minha bolsa da FCT não pude concluir o projecto de Doutoramento que tinha em curso, abandonei assim o meio académico que, com o da comunicação social, constituíam os 2 meios tradicionais de emissão de informação/reflexão nesse 2º nível. A Web 2.0, porém, abriu à generalidade das pessoas um 3º meio de emissão. E um meio particularmente livre, pois, não se sujeitando as mensagens ao juízo prévio dos pares, a publicação não se reduz às ideias estabelecidas em cada momento. No entanto, por outro lado, quem é que lê e dá atenção ao quê nestas andanças? Os números de visitas aos blogues da meia dúzia de opinion makers socialmente reconhecidos, de visitas aos sítios das academias e jornais de referência, etc., são abissalmente diferentes dos números de visitas aos milhões de blogues de anónimos (como eu). Se calhar não estamos muito longe do universo comunicacional em que, de qualquer modo, apenas aqueles poucos tinham acesso à emissão...
É o impacto no 3º nível que mais me interpela - não na forma reflexiva, consciente, da metafísica tradicional, mas na forma vivida ingénua e quotidianamente: no Facebook, ou no Messenger, a acompanhar um nome vem uma fotografia, mas descartam-se as 3 dimensões do corpo físico, assim como outras sensações do outro além da visão que se tem dele; fica diferente a constituição deste interlocutor virtual. E muito para além diso, os avatares no Second Life constituem-se mesmo como outros-eu... Enfim, em geral a virtualização do que há (durante a utilização da Web) intervém em parte da resposta à questão originária pelo que há enquanto tal.
E o que creio ser uma novidade histórica: essa parte da resposta, a uma questão que sempre foi exclusiva de elites intelectuais, é agora dada pela população nas suas vivências quotidianas (naturalmente sem a referida capacidade para a reflexão crítica).
Mais ainda que as implicações económicas, democratizantes, de e-learning, etc. que a Web 2.0 possa ter no 1º nível - os resultados nem estão a confirmar as entusiásticas expectativas de há uns 10 anos... - me palpita que é essa virtualização, num 3º nível decidido no 1º, que mais deverá marcar a civilização ocidental, e com esta o mundo, para as próximas décadas.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

"Leonardo da Vinci - O Génio"


Visitei ontem a exposição nomeada no título deste post (não toda, infelizmente, que calculei mal o tempo e depois tive que sair antes do que ela merece).
Lá está, quase insignificante (!) entre máquinas de tamanha engenhosidade, o instrumento de apoio à pintura com perspectiva - dando corpo à nova mundividência moderna da posição dos objectos num espaço absoluto, onde se apresentam segundo a perspectiva do observador - em vez da sua apresentação medieval segundo os respectivos significados (o mais importante seria o maior mesmo que visto a maior distância)... Lá estão os espantosos estudos sobre o corpo humano - na sua velhice, no seu movimento natural - o corpo daquele observador das relações dinâmicas entre as peças no espaço, que passa a criar - qual novo Criador! - toda uma série de novos corpos articulados e dinâmicos.
Outros artistas (os cubistas) como Leonardo deram depois o passo de se libertarem do espaço absoluto, e ficaram só com a perspectiva do observador (que pode juntar a frente e o perfil dum rosto simultaneamente), na mesma época em que os cientistas - que aquele pintor e inventor, na sua iliteracia matemática, não foi - reduziram o espaço às medições (segundo leis constantes, ex. velocidade da luz) de cada observador em movimento. E assim chegámos a esta vida de tantos méritos técnicos... e tão pouco sentido (de que o mundo medieval era prenhe).
O génio de Leonardo de intervenção num espaço absoluto - recriando pela pintura e desenho, criando máquinas - é um hino ao potencial humano! (A quem se encontra nesses seus antípodas, como eu, esta exposição maravilha por quão diferente o homem poder ser, e por quão longe poderem chegar as suas obras nesssas diferentes direcções!) Mas se onde essa Modernidade nos trouxe foi, por exemplo, à procura de todas as distracções possíveis deste primeiríssimo facto - cuja disssolução ainda não conseguimos criar - do tempo, do envelhecimento, e da morte, então hoje precisaremos dum génio maior ainda: o daqueles que não só pressuponham (ou mesmo elaborem) uma concepção do espaço e do tempo que faculte operações de resolução de problemas, e que concebam em conformidade instrumentos para tais resoluções, mas que façam tudo isso na implementação dum sentido para a nossa temporalização, e para uma vida que é mortal.

sábado, 8 de agosto de 2009

Livre arbítrio, mente... e "robopatas" (2)

3ª feira passada referi um recente encontro dedicado à possibilidade de robots se tornarem sociopatas, abrindo nesse post as questões do livre arbítrio - têmo-lo? Ou poderão os robots ascenderem a ele? - e da consciência - pela qual exerceremos a escolha ética... mas esta última funciona racional e até conscientemente?

Antes de avançar mais 1 passo em alguma dessas questões, deixo aqui a referência a um recente estudo que elucida melhor a sociopatia humana à qual a inteligência artificial está assim a ser eventualmente reportada. É o artigo de J. Decety et. al., "Atypical empathic responses in adolescents with aggressive conduct disorder: A functional MRI investigation", Biological Psyhology, 80 (2) 2009: 203-211 (http://ccsn.uchicago.edu/events/Decety_BiologicalPsy2008.pdf).
A hipótese a testar foi a de que os adolescentes violentos se revelariam emocionalmente indiferentes ao sofrimento das respectivas vítimas. A metodologia empregue foi a da visualização do cérebro em actividade, aplicada a tais jovens que assistiam a imagens de violência. A MRI, porém, infirmou aquela hipótese, revelando antes que, nos delinquentes, as emoções são solicitadas... mas mediante os centros cerebrais do prazer! Ou seja, invertendo a empatia pela qual se sofre perante o sofrimento de um semelhante a nós, aparentemente a sociopatia associa prazer no próprio ao sofrimento alheio - sofrimento de algo que assim deixará de ser semelhante ao sujeito do prazer. Daí a opção por comportamentos destrutivos ao invés de construtivos ou pelo menos liberais.

Voltando aos robots, e à questão da escolha ética, desde logo me parece que essa experiência coloca mais um problema à tese funcionalista segundo a qual a mente se explica pelas funções exercidas, nomeadamente desde um input a um output passando pelo tratamento lógico, formal da informação; sendo indiferente que o que implementa tais funções sejam células nervosas (neurónios), ou semicondutores num sistema de hardware, etc. - daí a ideia de que a inteligência artificial será equivalente à humana - e derivando o output (comportamentos resultantes) do input + regras de tratamento da informação.
Diferentemente, no momento intermédio do tratamento da informação pelos vistos ocorrem qualidades emocionais (sofrimento, prazer...) que não derivam do input, nem decorrem estritamente do sistema de tratamento da informação, mas que determinam o sentido desta última, condicionando assim o output comportamental - ex. ou o sofrimento que gera solidariedade, ou o prazer que gera destruição gratuita.
A questão de uma eventual "robopatia" dependerá então 1) da inteligência artificial poder gerar tais qualidades, não se restringindo ao tratamento formal da informação; e 2) dessa geração ser livre, escapando à programação prévia do robot, de tal modo que nestes possam passar a ocorrer qualidades emocionais pervertidas. Note-se que isto porventura se conjuga com toda uma teoria da mente, nomeadamente com os processos perceptivos pelos quais se reconhece o outro como semelhante, ou como objecto de exercício do poder; ou com os processos éticos e mesmo existenciais pelos quais se opta pelo poder-destruir em detrimento do poder-construir...

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Crise económico-financeira, transhumanismo... e a diferença entre "felicidade" e "prazeres"

No último ou penúltimo almoço com a Maria João Cavaco e o João Paulo Constância (prazeres (se não mais que isso) que só pecam pela irregularidade!) falámos da diferença, hoje tendencialmente ignorada, entre felicidade e prazer. O segundo termo designa alguma satisfação imediata e pontual. Já o anterior pode ser usado apenas para uma sucessão de prazeres. Mas assim falta um termo para designar antes a emoção própria a uma vida com sentido, que por isso valha a pena estar sendo desenvolvida a despeito dos diversos custos - desprazeres! - que também a constituem; "felicidade" era usado para designar esta outra emoção. Vem esta recordação a propósito de 2 recensões que li há dias:

Uma, de Crise et Rénovation de la Finance (Paris: Odile Jacob, 2009) do conhecido economista Michel Aglietta juntamente com Sandra Rigot; a outra, de Demain les Posthumains (Paris: Hachette, 2009) de Jean-Michel Besnier. A 1ª obra aponta como núcleo da renovação da finança contemporânea a substituição de uma lógica de investimento de curto prazo (na expectativa dos maiores dividendos por menor que seja a sustentabilidade económica, e sem atenção a consequências sociais e ecológicas, etc.) por uma lógica de longo prazo, no respeito pela sustentabilidade. Na 2ª obra, por sua vez, quaisquer projectos de fusão homem-máquina, de ligação do cérebro à internet, de digitalização das recordações de cada pessoa de modo que a memória destas (não sobre estas) perdure para além da morte física,... na medida em que dissolvam a responsabilidade pessoal e intransmissível são acusadas de constituirem uma "fatigue d'être soi". Nomeadamente, representarão o fim do ideal de cultura, a saber, o da auto-ultrapassagem do homem... de modo que nos resta procurar obter tantos e tão intensos prazeres quantos possível. Uma procura que, sem alvo orientador a cumprir, se quedará pelos investimentos (financeiros entre outros) de curto prazo.
Se do demain de J.-M. Besnier nos falta a técnica (para tais ligações à internet, etc.), os resultados económico-financeiros desde 2008 para cá parecem implicar uma redução de "felicidade" a "soma de prazeres" (por parte dos responsáveis por tais resultados, a começar por quem os fez, mas continuando com quem lhos permitiu, mais todos quantos têm votado nestes políticos em detrimento dos logo rotulados velhos do restelo...), redução que, representando a dissolução de qualquer meta humana a cumprir, indiciará uma já nossa posthumanité.

Deixo este post mais como conjunto de sugestões do que já como discurso articulado. Mas pode encontrar um destes últimos, nesta área temática, já aqui ao lado no blog de M. Berman, nomeadamente no post:

http://morrisberman.blogspot.com/2009/04/how-chic-was-my-progress.html#links

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Crise civilizacional... e desenvolvimento técnico?!

Apenas 1 nota de apoio ao post Objecção à subordinação da técnica... e pista de c...:

A evolução técnica do último meio século tem sido formidável (designadamente na informática, robótica industrial, telecomunicações), e anuncia-se continuar com as promessas biotecnológicas, nanotecnológicas, etc., de modo que parece difícil falar de uma crise civilizacional global precisamente na civilização, o Ocidente, que tem promovido essa evolução. No ensaio que estrutura este blog limitei-me a postular uma dependência, a longo prazo, da técnica em relação à ciência (dependência lógica, pois processualmente, ou sobre a ciência tal como esta se faz, acontece ser ela estimulada pela técnica), para depois apontar uma crise paradigmática na ciência fundamental contemporânea.
Contra esse postulado, parece vir o parágrafo "The rise of science from technology" de James K. Feibleman em Technology and Reality (The Hague, Boston, London: Martinus Nijhoff, 1982: 8-9). Contrabalançando tal subtítulo, porém, logo nas 2 primeiras linhas o autor reconhece a ciência pelo método hipotético-dedutivo - de forma que o conhecimento não se erige de baixo para cima (bottom-up) a partir de quaisquer átomos - como pretende o projecto tecnocientífico mencionado naquele post anterior - antes evolui em espiral, duma hipótese teórica para baixo na confirmação dela, e daqui eventualmente para cima e para a frente induzindo alguma evolução das hipóteses. E estas são formuladas intelectualmente, não decorrem directa e neutralmente das sensações. Uma crise científica asfixiará assim, a longo prazo, o desenvolvimento técnico.
Nessa obra já algo antiga, a ciência é então dita emergir da técnica, por um lado, pela sua dependência actual de instrumentos técnicos complexos, por outro lado, num seu estatuto pragmático de actividade de resolução de problemas (tal como a técnica). Este segundo ponto, porém, apenas constitui uma assunção pelo autor da concepção pragmática de "conhecimento" [sobre o significado deste último nome posso sugerir a minha notasinha em http://www.webartigos.com/articles/13591/1/o-que-e-conhecer/pagina1.html], não reduz os problemas teóricos a práticos ou técnicos. Quanto ao uso de gigantescos aceleradores de partículas, etc., etc., esse uso, logo na concepção de tais instrumentos, é pré-orientado pelas hipóteses. Quando passam a ser estas a serem escolhidas conforme o custo daqueles - como acusa hoje Isabelle Stengers na nota 7 de O Nó do Problema Ocidental - prepara-se uma decadência científica. "rise", na frase acima é para escrever sempre em minúsculas.

Sobre o conhecimento (logos) da técnica, ou "tecno-logia", deixo aqui o link para um texto (entre outros) no Site Internet de l'UTBM - veja-se como esse conhecimento não dispensa hoje as dimensões social,...

http://www.utbm.fr/upload/gestionFichiers/Quelle-technologie_Lequin-Lamard_2037.pdf

sábado, 18 de julho de 2009

Objecção à subordinação da técnica... e pista de contra-objecção

O video em baixo é uma apresentação por Bernadette Bensaude-Vincent do seu recente livro Les Vertiges de la Technoscience - Façonner le monde atome par atome (Paris: La Découverte, 2009). Esse projecto tecnocientífico apresenta uma objecção ao meu argumento, no cap. 4 de O Nó do Problema Ocidental, pela não unicidade do(s) mundo(s) que resulta(m) dos diversos projectos de investigação tecnocientífica - isto é, opções de base diferentes levam estes últimos ao que os metafísicos contemporâneos chamam "mundos paralelos". Pois (esta é a objecção) a partir de átomos, na base da escala nanométrica, afinal será possível convergir num único mundo - e progressivamente melhor!

Mas a este projecto tecnocientífico contemporâneo me parece logo se contrapor a diversidade actual das concepções dos ditos "átomos" - apontei isto nas pp. 57 e 58 desse ensaio escrito entre 2004 e 2006; posterior à bibliografia ali referida, veja-se a muito sugestiva explicação de José R. Croca e Rui N. Moreira em Diálogos Sobre Física Quântica - Dos Paradoxos à Não-Linearidade (Lisboa: Esfera do Caos, 2007). Além disto, Bensaude-Vincent aponta o reconhecimento dos valores éticos na pré-orientação dessas pesquisas. Ao projecto de convergência tecnocientífica restará pois dissolver a diversidade ética e meta-ética, que apontei nas notas 19 e 24 do ensaio... ou dissolver-se ele próprio (projecto).