quarta-feira, 5 de agosto de 2009

"Da esperança na salvaguarda da Natureza" (14/04/1989)

Há 20 anos, 3 meses, e 22 dias publiquei no antigo jornal Açores o artigo que transcrevo em seguida, sob o título acima indicado - colocando-o tanto no seguimento (ou como antecedente!) de Sim, "problema"! (2) e de "L'abîme ou la métamorphose?" , quanto em correlação à máxima de V. Burgin: essa foi a promessa que, ontem, alguns de nós fizemos para um amanhã que, nestes últimos anos, se começou a dizer que é mesmo para "amanhã".
Se assim for, isto é, se tivermos "que viver no nosso quotidiano o que daqui decorrer" - portanto, se esse amanhã vier mesmo a ser hoje para nós - então valerá a pena apontar, de um lado, os instrumentos teórico-práticos mediante os quais uns (muitos!) fizeram a previsão de que a Natureza se auto-regenera indefinidamente; em paralelo aos instrumentos teórico-práticos mediante os quais alguns (poucos) previram antes que 1) a auto-regeneração da Natureza seria limitada, e 2) que nos estávamos a aproximar a uma velocidade crescente desse limite.
Por outro lado, relativamente apenas a esta 2ª previsão, valerá a pena apontar os instrumentos teórico-práticos mediante os quais alguns destes previram que uma retórica apropriada poderia levar a uma reorientação política, económica e social que evitasse consequências ecológicas graves; em paralelo aos instrumentos teórico-práticos mediantes os quais outros, creio que menos ainda, previmos que essa reorientação só seria possível quando as populações mais implicadas na poluição começassem a partir os dentes na parede por elas criadas. Esperando depois "que ainda vão a tempo"...
Por certo que instrumentos que tenham uma vez facultado previsões que se verificam não ficam por isso garantidos para todo o sempre. Mas, no mínimo, merecerão agora um pouco mais de atenção do que aqueles outros cujo uso tiver falhado redondamente.


"Chegam notícias de problemas ecológicos, e de conferências internacionais sobre as medidas a tomar, de missões científicas que os estudam, de confrontos entre populações e polícia, ou até mesmo de tensões entre países a propósito desta questão. Tudo isso sem resultados animadores à vista. A partir daí, e fazendo fé nos alertas que se têm lançado, mesmo que nestes se desconte algum exagero, que esperança pode ter o cidadão comum na manutenção do actual estado da Natureza, ou do seu melhoramento em casos que já o imponham?
Em primeiro lugar tomemos consciência que este problema poderá mesmo ser nosso, isto é, é bem possível que tenhamos que viver no nosso quotidiano o que daqui decorrer. Por um lado, quanto às medidas que se tomarem: porque se pensa hoje que o que acontece num ponto do planeta terá consequências no ponto oposto, e zonas como a Amazónia podem ter mesmo uma importância vital; e porque o princípio da nossa atitude quanto às questões globais, para as quais não somos tidos nem achados a não ser para a partilha das consequências (embora aqui, para compensar a ausência nas decisões, poderá caber-nos a parte do leão, que é o que nestas coisas costuma acontecer aos mais pobres, como já se vai vendo, se bem que por enquanto só com os mais pobres dos pobres), é o mesmo princípio que nos norteará nos assuntos da nossa jurisdição. Por outro lado, quanto à perspectiva do momento das consequências eventuais: porque o tempo histórico é relativo, uma década contemporânea faz a história avançar mais do que um século de ainda há pouco tempo atrás - não se pode perspectivar o futuro a partir do ritmo histórico do passado; e porque não é por uma coisa nunca ter acontecido que se pode concluir que não acontecerá - o avanço tecnológico pôs o planeta nas nossas mãos, e quer para o presente quer, segundo se julga quanto à radioactividade, para a determinação dos próximos milénios - talvez fosse de pensar nisto nas pausas para o café, se é que de facto é em nome dos nossos filhos, e dos seus cinco automóveis, três moradias, e férias no Hawai, que a actual febre progressista encontra o seu fundamento...
A estrutura política que condicionará as decisões que se tomarem será, maioritariamente, democrática, pois este é o regime da maioria dos países altamente industrializados - os mais poderosos e os mais poluentes. Que esperar então da resposta democrática a este problema? Pouco. A política, em democracia, está bastante condicionada pelo eleitorado; ora este geralmente é estúpido. Não nos referimos à incapacidade de raciocinar, ou seja, de encadear juízos segundo regras lógicas. Referimo-nos antes à incapacidade de constituir propriamente aquilo que, seguidamente, poderá ser objecto de raciocínios; trata-se de clareza e profundidade. Os políticos, para além de estarem bastante condicionados pelos seus eleitores, não costumam dar provas de ficarem muito atrás destes últimos quanto à incapacidade referida - como sinal disto, veja-se como são tão raros quanto honrosos os exemplos de líderes com uma consciência do processo histórico que lhes tenha permitido uma actuação que, mesmo sem grandes méritos imediatos, optimizasse o médio e longo prazo. Habitualmente as atenções incidem sobre o mais imediato - o que não levantou dificuldades de maior enquanto as consequências nem eram planetárias nem milenárias; mas, agora, e pela alteração destas características, não importa repetir que o horizonte do problema estará a mudar.
Por outro lado, aquilo que se vê é visto "por de dentro" dum modelo cultural, que determina a consideração de problemas e objectos. O nosso modelo privilegia a produção de riqueza, sua posse, e seu usufruto ao nível de bens e comodidades materiais. Se os telespectadores assistem às notícias inicialmente referidas é porque podem fazê-lo (!) - é porque têm disponibilidade económica para tanto, ou seja, é porque há riqueza. E, com os meios de produção conhecidos, essa riqueza supõe poluição.
Pois bem, tendo em conta a referida estupidez habitual das massas populares e respectivos representantes políticos (não pretendendo esquecer as excepções, mas tendo em conta que, neste caso, dificilmente algum governo isolado poderá ter sucesso), e ainda o modelo cultural que os determina no Ocidente, será previsível uma troca de riqueza pelo equilíbrio ecológico? Por outras palavras: estará o telespectador, açoriano, japonês, russo ou americano - não serão muito diferentes - disposto a abdicar da poltrona, do assado bem regado, ou da própria televisão, em nome duma distante Amazónia, ou duma Natureza que, para muitos, já pouco mais será que puramente televisiva?! Certamente que não. Pelo menos enquanto o uso da riqueza possível não depender precisamente do equilíbrio ecológico.
Ora é disto mesmo que alguns afirmam estarmo-nos a aproximar. A tolerância da Natureza não será infinita e, uma vez ultrapassada, poderá ocorrer um desequilíbrio com consequências muito variadas e muito graves. Desviando-nos um pouco da ecologia, um outro alerta se coloca, talvez mais grave: é discutível se esse modelo cultural que se tem referido satisfaz o "destino" do homem.
Quanto a este último alerta, e para os social e culturalmente bem inseridos, restará esperar que não tenha sentido, para que se não diga que morrerão antes de nascerem (paráfrase a Erich Fromm, em Psicanálise da Sociedade Contemporânea, faltando-me a referência bibliográfica completa). Ainda neste tema, diga-se que um modelo alternativo ao actual, para onde esse alerta apontaria, se concretizado colectivamente - o que de qualquer outro modo não será possível - conduziria a uma revolução de tal monta que a de 1917, se comparada, não passaria dum mero golpe palaciano!
Quanto à salvaguarda da Natureza, que foi o que directamente aqui nos trouxe, tendo em conta as condicionantes políticas, económicas e culturais, resta esperar que se enganem os que anunciam desastres ecológicos e médio prazo. Se assim não for, então que quando se multiplicarem os índices de cancro, atribuindo os especialistas tal fenómeno à rarefacção do ozono, ou as falhas nos depósitos de lixos radioactivos, e "marchando" a esposa do nosso telespectador por este meio; e que quando se usarem máscaras de oxigénio no funeral da senhora (tal seja a catástrofe!), falando-se aí, em vez das anedotas habituais, duma certa mata sul-americana chamada Amazoniasinha, que ao menos as medidas político-económicas que, nessa altura, e por mais altares que se tenham erguido à produtividade, ou por mais fundo que os cifrões estejam marcados nas testas do telespectador e seu representante político, certamente saltarão para o topo das prioridades, resta-nos esperar, como dizíamos, que ainda vão a tempo."

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