domingo, 2 de agosto de 2009

Da arte às ciências: a ambiguidade como paradigma representacional

Mal a vi pela 1ª vez (apertada entre tantas outras pequenas imagens num livro de arte contemporânea) me tocou a obra de Victor Burgin que agora escolhi para representar este blogue. Materialmente, creio que não se terá apenas ajustado, mas também potenciado a minha inclinação teórica para o pragmatismo, ilustrando a lapidar frase de Jesus sobre critérios de avaliação: "a árvore vê-se pelos frutos" (se fosse protestante citá-la-ia de cor correctamente, mas não foi essa a minha formação, e na informalidade de um blogue o leitor perdoar-me-á que a não vá procurar aos Evangelhos).
Introduzindo a tese de Emily R. Grosholz em Representation and Productive Ambiguity in Mathematics and the Sciences (Oxford: Oxford University Press, 2007), diria que essa potenciação se deverá à forma da obra: dada a heterogeneidade dos seus elementos, esta tanto pode ser interpretada a partir da imagem quanto do discurso verbal, do preto-e-branco e do adormecimento dos subúrbios quanto das promessas feéricas do anúncio publicitário... na reunião porém do critério que o título propõe. A sua manutenção na ambiguidade, a sua reserva contra qualquer elucidação desta última, é precisamente o que nos projecta para além duma sua interpretação directa... e pré-delimitada.

Por isso a referência a essa obra plástica me parece por sua vez uma boa introdução ao 1º cap., que acabei de ler, do livro onde Grosholz estende a produtividade da ambiguidade à representação científica em geral, e matemática em particular (música para o ouvido diletante e cábula para onde tantos de nós tendemos a derrapar!...). Isto é, a autora pretende que a ambiguidade, afinal própria às linguagens científicas, não só faculta mas mesmo estimula o desenvolvimento de cada ciência. Nesse cap. introdutório, invocando a diferença estabelecida por C.S. Peirce entre ícones (assemelháveis às respectivas referências) e símbolos (cuja referência é apenas convencional), começa pela representação nas ciências naturais, com os exemplos da argumentação de Galileu (in: Discorsi...), e do uso da notação química de Berzelius:
O grande físico italiano combina linguagem natural com números e diagramas. Sendo o uso das proporções nestes últimos, sobre a queda dos graves, plurívoco: se os seus (das proporções) termos forem tomados como finitos, a interpretação dos diagramas implementa a geometria euclideana, de cujas figuras aquelas configurações serão ícones. Já se os termos das proporções forem tomados como infinitos, projecta-se a interpretação da teoria dinâmica do movimento depois desenvolvida por Torricelli e Newton, e as configurações representam simbolicamente o processo temporal dessa queda. Também sobre o movimento de projécteis, a curva da semi-parábola que o representa, lida iconicamente, vale para o rasto do movimento (como o fumo largado por aviões de acrobacia), enquanto lida simbolicamente vale para um polígono de infinitos lados que articula relações duma infinidade de instâncias de movimento uniforme que compõem o movimento acelerado do projéctil. O mesmo elemento linguístico, portanto, pode valer de mais de 1 maneira, e cabe ao intérprete escolher de cada vez, consoante o contexto.
De forma semelhante, as letras em fórmulas como H2O podem assumir um sentido macroscópico, referindo compostos químicos, tanto quanto relações quantitativas, tanto quanto um sentido microscópico, referindo pesos atómicos ou partículas elementares. Depende do contexto - a identificar pelo intérprete (de facto quando a esmola é grande o cego deve desconfiar... esta interpretação contextual ainda nos deverá trazer mais trabalho do que os cálculos lineares quebrados pela ambiguidade!).
Fico agora com especial curiosidade pelo 2º cap., também introdutório, onde E.R. Grosholz sustenta que essa ambiguidade se estende mesmo à notação matemática. (A propósito, lembro-me de ouvir que a Dra. Conceição Garcia - de quem também fui um preguiçoso aluno de matemática na E.S. Antero de Quental - costumaria dizer que os testes desta disciplina têm que ser interpretados quase como os de Português ou Filosofia).
Mas ainda no 1º cap., a autora assume-se numa abordagem eminentemente pragmática à representação científica. Contrapondo-se assim ao projecto de Carnap e do Círculo de Viena de uma redução progressiva das ciências naturais à física atómica, e da matemática à lógica, com a pretensão de reconstruir cognitivamente o mundo a partir duma linguagem unívoca (nomeadamente da lógica formal, até pela matematização do discurso físico). Este livro de filosofia e história das ciências fará assim peso no prato da balança do parágrafo 4.1.2 de O Nó do Problema Ocidental, onde apresentei um paradigma científico que enjeita a redução dos fenómenos a elementos simples e respectivas regras de associação. Além disso, servem aqui frases como "the concatenation of (...) components in a simple and perspicuous way" (Representation and Productive Ambiguity..., p. 26), que propõe a simplicidade e a clareza para o desenvolvimento às minhas reticências finais em Ciência: método vs. dialéctica e retórica (embora eu continue com reticências para além destas propostas).

Uma última questão: se as teses científicas em geral, e matemáticas em particular, são apenas o que as comunidades dos reconhecidos como competentes em física, química,... dão o assentimento enquanto resoluções de problemas contextualmente condicionados - como pretendem os ditos pragmáticos - então impiorta determinar um critério mediante o qual se possa identificar alguma formulação precisamente como resolução do problema por ela (formulação) visado.
Ou voltando a Burgin, em cada processo há que reconhecer qual é o "hoje" que se constitui como o "amanhã" ontem prometido. Como é que esse estatuto se reconhece?...

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