Ao se isolar uma questão - de entre todas as que se lhe possam relacionar- é prudente não pressupor algo sobre ela. A começar na posição, ou existência daquilo a que a questão se refira. Assim, se se pretende questionar o que seja, como seja... a consciência, deveremos recuar um passo e reflectirmos sobre o que nos leve sequer a referir algo que se possa chamar - de acordo com a prática linguajeira - "consciência". Para depois ser logo de acordo com essas sugestões que se irá concebendo o que e o como do que receberá tal nome.
Foi esta a metodologia assumida - ainda que talvez não sistematicamente desenvolvida - por Jeffrey Gray em Consciousness - Creeping Up on the Hard Problem, Oxford: Oxford University Press, 2004. Tendo lido mais algumas passagens suas depois de escrever Livre arbítrio, mente... e "robopatas", apontarei aqui 3 notas: a 1ª e a 2ª com o balanço e a projecção que fez em 2004 (ou 2003, pois morreu em Abril de 2004) da abordagem neurocientífica à consciência, a 3ª com uma cogitação minha sobre o assunto.
1ª - No parágrafo 8.1 o autor aponta 9 assunções (A) que julga deverem ser feitas, ou escolhidas entre elas, por qualquer futura (!) teoria completa da consciência:
A1: As neurociências vieram confirmar, com a metodologia científica, o que a filosofia do conhecimento afirmara (pelo menos desde Kant) mediante a análise lógica do acto de conhecer - o mundo percebido é uma construção do cérebro, ou da mente, na base de sensações (inconscientes). Mas haverá alguma correspondência entre esse mundo mentalmente construído e aquilo a que ele se refira (o mundo real), pois só se assim se explica que acções que se orientam segundo o 1º tenham sucesso ao se desenvolverem no 2º. Tal como haverá alguma correspondência entre as construções de diversas pessoas, ou não poderíamos agir em complementaridade, como fazemos.
A2: Um bom exemplo desse processo construtivo é a visão - por sinal, o sentido que muitas vezes serve de analogia ao conhecimento.
A3: Essas 2 correspondências dever-se-ão a algum valor para a sobrevivência individual, ou reprodução da espécie, que a consciência - que as implementa - logrará.
A4: Essa consciência terá sido a forma mais fácil do cérebro, na sua evolução filogenética, alcançar esse poder de sobrevivência para a espécie humana.
A5: Isso de "consciência" poderá não ser exclusivo dos mamíferos humanos; embora só nestes ela tenha facultado funções como a linguagem estruturada sintáctica e semanticamente.
A6: Os conteúdos da experiência consciente ("qualia": verdes, salgados...) são inteiramente perceptuais, e em geral (mas não constitutivamente) estão marcados pela intencionalidade das respectivas percepções.
A7: Os qualia são construídos pela mente (cérebro) inconsciente, advindo automática e involuntariamente à consciência.
A8: A experiência consciente selecciona apenas uma pequena parte dos processos mentais, e, daqueles, apenas uma pequena parte de cada um.
A9: Tal como na percepção, também na tomada de decisão a consciência é posterior - isto é, as nossas opções práticas já estavam inconscientemente feitas quando delas tomamos consciência.
2ª - Nos parág. 8.2-8.4 esse neuropsicólogo esboça uma teoria parcial da consciência na base anterior. Em síntese, chamar-se-á "consciência" à faculdade de conceber um mundo externo razoavelmente estável a partir dos qualia, mundo esse no qual depois ela detecta erros pela comparação das expectativas aos resultados obtidos (v. V. Burgin, UK76!), e gera a correcção desses erros.
Gray enjeita o funcionalismo (Livre arbítrio, mente... e "robopatas" (2)) dado o facto de nem sempre uma função mental corresponder a um único quale (ex. sinestesia). E enjeita o epifenomenalismo - tese de que a consciência não é mais do que uma expressão vivencial de fenómenos electro-químicos, de modo que ela não terá quaisquer intervenções causais - precisamente por lhe reconhecer eficácia causal (ex. correcção de erros).
Dada esta eficácia, a consciência não se limita a um mero sentimento de si, isto é, ao reconhecimento de que há alguém fazendo isto que me encontro a fazer, e que é quem me lembro de fazer outras coisas antes e me preparo para outras depois. Mais do que disso, a consciência será espontânea, geradora de efeitos.
3ª - "...Science looks to 'reduction' (...) to show that phenomena encountered at one level, or better still the scientific laws used to explain them, can be eliminated ('reduced') in favour of phenomena or laws encountered at a more general level. (...) reduction of conscious experience might take the form of showing that this can be explained by the laws of physics, or by the principles of cybernetics. (...) - assuming, that is, that reduction is possible at all" (op.cit.: 304). O itálico é meu, visa enfatizar uma frase que talvez se constitua como a melhor pista que o autor deixa para a incompletude que ele, do princípio ao fim do livro, atribui á actual teoria neurocientífica da consciência.
Porventura a nova e completa teoria para que ele apela simplesmente deverá desistir de tentar reduzir os fenómenos ditos "conscientes" seja a funções (segundo os princípios cibernéticos), seja às leis físico-químicas, seja a outro ainda.
Pergunto-me se uma pista não será a da inversão desse movimento: o que se chamará "consciência" é que estará na base conceptual do que se chamará "funções", "átomos" e "moléculas", etc. Afinal, a que se atribui uma reflexão sobre processos mentais como precisamente esta das neurociências? As teses destas últimas ultrapassam em muito as meras expectativas consideradas pelo detector de erros, com o qual o autor parece identificá-la. A reflexão, não passiva ou epifenoménica, mas geradora destes conceitos com os quais, depois, se dirá que o mundo é uma construção mental, etc., talvez seja a 1ª nota do que se chamará "consciência", antes de quaisquer sentimentos de si ou de qualquer eficácia causal.
Mas neste caso - contra Gray - não vejo como possam os métodos científicos tomar a dianteira na investigação sobre a consciência. Trarão desenvolvimentos, confirmações e correcções pontuais, mas o busílis continuará apenas visado, não direi "ao alcance de" mas "visado" (!), pela tradicional análise lógica filosófica.
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