sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Civilização e o valor da hipocrisia

No fim do post da última 2ª feira referi-me a Balzac (Ilusões Perdidas), e à hipocrisia na chamada "alta sociedade". A 1ª ilusão a perder será assim que o discurso moralista, que nesse estrato social se enfatiza precisamente porque esse é o estrato que mais assume a responsabilidade de manter a ordem social (que lhe é favorável!), é que as pessoas que o (discurso) fazem vivam intimamente segundo tais preceitos, ou sequer que se esforcem afincadamente por isso. Mas creio que, depois, há uma 2ª ilusão a perder - fico à espera da leitura da minha mulher revelar se também Balzac o pensou.
Refiro-me à ilusão de que essa hipocrisia seja algo a combater, nomeadamente numa sua denúncia militante.
Com efeito, parece-me bem plausível que tal hipocrisia seja antes um mal menor. Tenho estado a reler alguns parágrafos soltos de Dietrich Schwanitz, Cultura - Tudo o que é preciso saber, 2ª ed., trad. L. Nahodil, Lisboa: Dom Quixote, 2004. Por mais de uma vez o autor salienta a importância que, na sua interpretação, teve para a história (nomeadamente o desvario nazi) a falta de uma corte nos Estados alemães, por contraposição às cortes francesa e inglesa. Nestes outros países a constituição de Estados-Nação, dotados de administração e exército que respondiam perante o rei e/ou os ministros que dele dependiam (na Inglaterra crescentemente do Parlamento), é concomitante da substituição dos comportamentos de poder discricionário dos senhores nos respectivos feudos, por comportamentos corteses, mediante os quais os senhores disputavam as boas graças do soberano. A cortesia - parafraseando uma frase sobre política - surgiu como a continuação da violência directa e física (da guerra) por outros meios. Sendo uma guerra que se não assume como tal, é constitutivamente hipócrita.
É desagradável? É. Destrói mais, e gera um maior sofrimento do que a violência medieval? Sinceramente, não me parece. Logo, é um mal menor.
Um mal que poderá ser ultrapassado numa condição: a de se ultrapassar o magistério de Jesus Cristo - que dizia "muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos" - e conseguir-se uma tal retórica que detone na generalidade dos interlocutores a coragem para enfrentarem as suas limitações, e a generosidade para as ultrapassarem. Enquanto estes optimistas se ficarem pelo nível do tonto do Platão, que acreditou que ia convencer um tirano e acabou feito escravo por este - para já nem dizer pelo nível dos aldrabões que nas faculdades de ciências da educação promovem as novas pedagogias e praticamente insultam quem não centra a escola nos alunos... para ganharem os salários que lhes permitem pagar os colégios particulares tradicionalistas onde põem os filhos a estudar - a opção geral que resta é apenas entre a violência dos senhores feudais e a hipocrisia desenvolvida pelos cortesãos.
Isto não significa que íntima, ou privadamente, não sejam possíveis aquelas coragem e generosidade. Mas estes serão desafios para cada pessoa, vencidos por uns (poucos?), perdidos por outros (muitos?), provavelmente até mais fáceis de vencer se o meio onde se jogam - povoado pelos que os perderam - for o da menor destruição apenas pela hipocrisia.
Os pretensos méritos da classe social mais representativa da ordem geral da sociedade deverão assim ser denunciados num convite a cada um para a coragem e a generosidade. Mas essas denúncias deverão restar contidas aquém do limite para além do qual a hipocrisia cortês, civilizada, é substituída pela barbárie. Pois esta destrói a civilização que melhor potencia, apesar de tudo, a existência humana.

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