"O destino da Europa foi sempre regido pelo desenvolvimento obstinado das liberdades individuais, das imunidades, que são privilégios concedidos a certos grupos: uns pequenos, outros grandes. Muitas vezes, essas liberdades opõem-se, chegam até a excluir-se.
Naturalmente que só se pôs a questão das liberdades quando a Europa ocidental se constituiu como espaço homogéneo, como casa abrigada. Sem uma casa defendida, evidentemente, não há liberdades possíveis. Os dois problemas constituem um só".
Com esses 2 parágrafos abre Fernand Braudel a secção ocidental (III) da sua obra Gramática das Civilizações, trad. T. Costa, Lisboa: Teorema, 1989 (1963), p. 291. Creio que ilustra muito bem as 2 questões que me ocorreram ontem ou ante-ontem após a notícia de uma muçulmana impedida de tomar banho numa piscina pública francesa com o seu burkini - ocorreram-me... depois do espanto, e o pelo nome ainda foi menor que o pela imagem da indumentária com que a mulher, muito cândidamente, se dispôs a tomar banho! (Mas albarda-se o burro à vontade do dono).
A 1ª questão é teórica, e versa a identidade que desenvolvemos nomeadamente ao lidar com os nossos diferentes, cuja mão-de-obra nos tem interessado. Se nos temos identificado pelo exercício da liberdade, então antes ainda de proibições como aquela chegarem ao seu destino, logo no agente estão destruindo essa identidade, precisamente em nome da qual a proibição será feita - Cuidado com os tiros nos pés.
A questão porém é mais complexa: ainda no âmbito da liberdade, como acentua o historiador francês, algumas destas podem excluir-se mutuamente. A liberdade do uso do burkini no Ocidente exclui a liberdade duma ética social universalista que se proponha apontar a todos os costumes aceitáveis. Mas não exclui a liberdade de uma ética política liberal que se limite a postular que a liberdade prática de cada um termina quando começa a do próximo - que uma mulher se cubra da cabeça aos pés para tomar banho (o burkini inclui até uma saia por cima das calças, não fosse alguma forma se adivinhar...) não exclui inclusivamente que, perante esse espectáculo, pensemos que quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga!
É portanto da nossa filiação na tradição moderna iluminista, eminentemente francesa, versus uma nossa filiação na variante anglo-saxónica da Modernidade, que trataremos ao tratar dessas questões de burkas, etc.
Mas há ainda uma 2ª questão, esta prática: Números como os apontados em O peso da demografia indicam que, a bem ou a mal, teremos que lidar com não ocidentais no centro mesmo do espaço tradicional desta civilização. Os demógrafos costumam traçar as suas previsões em intervalos entre cenários mais optimistas, e outros mais pessimistas, em qualquer caso creio que deveremos escolher lidar a bem... no nosso, nem sequer no interesse deles!
Com efeito, as curvas demográficas dos ocidentais e dos muçulmanos são de tal ordem que a nossa opção prática parece ser entre uma integração da diferença (que não poderá ser a da sua dissolução!), que nos obrigue a cedências, e uma tensão de desfechos imprevisíveis... mas que muito provavelmente nos destruirão mais do que aquelas cedências.
As 2 questões talvez se relacionem: porventura a prática determina a teórica como uma escolha entre a ultrapassagem da herança iluminista, de um lado, e do outro a desvalorização de qualquer liberdade, no abandono da identidade ocidental.
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