segunda-feira, 15 de março de 2010

Divagações arquitectónicas

Há tempos uma amiga arquitecta, a propósito dum meu post sobre arquitectura, desafiou-me a trazer aqui mais vezes  essa área - não sou competente para isso (quer dizer, ainda sou menos do que em outros terrenos que por isso me tenho atrevido a pisar...). Mas a verdade é que a arquitectura distingue-se de outras artes desde logo por, ao contrário destas que podem restar ignoradas em livrarias, museus, salas de concerto... aquela é impositivamente pública. Convivemos com ela diariamente, queiramos ou não, consciente ou inconscientemente. É pois sempre coisa nossa, por menos que saibamos dar conta disso.
Sabendo da previsão de chuva para o fim de semana, levei assim comigo The condition of Postmodernity, de David Harvey (Oxford: Blackwell, 1990 - creio que já há trad. port.), para ler aleatoriamente nesses 2 dias num hotel de traço vincadamente modernista. Por sinal, acrescentado por um arquitecto tio daquela minha interlocutora. Mas o projecto original é do Eng. Manuel António de Vasconcelos (1907-1960). Como se vê na foto da entrada, nele se destacam as linhas horizontais, curvas que evitam as arestas (v. esquinas arredondadas, corrimão); a elegância cosmopolita duma escadaria teatral, do conforto discreto de madeiras nobres mas combinadas com metais próprios às tecnologias modernas (ex. grandes dobradiças nas portas das áreas comuns, candeeiros, todo o mobiliário da sala de jantar creio que desenhado também por Vasconcelos...); ainda reforçando esse internacionalismo (cosmopolita), v. elementos marítimos ou navais como o óculo ao fundo na foto com um aquário, ou os corrimões e varandas lembrando os convés de navios - que cruzam os mares internacionais entre as terras particulares! O depuramento do traço - despido de enfeites - deixa de fora quase qualquer particularismo cultural (não dei conta de outro além do telhado regional, diferente dos balcões horizontais modernos). E mesmo a natureza é incorporada nessa vivência harmónica, onde tudo tem um lugar (v. foto da sala de jantar).
A questão colocada ao modernismo, como Harvey (Chap. 1) realça, incide precisamente aí: tudo ter um seu lugar. O ideal iluminista de uma ordem universal, muito bem exemplificado pelas ciências modernas, cuja descoberta e assunção prática conduziria a um progresso de todos, enfrenta a questão da legitimação dessa ordem, e concomitantemente de quem terá a legitimidade de a proclamar e implementar... Autores como Adorno e Horkheimer vieram denunciar que aquele projecto de libertação, afinal, na prática constitui mais uma versão da opressão de uns poucos sobre muitos outros. Mesmo autores como Habermas, que mantêm o projecto moderno, adoptam-no em versões fracas.
Daí o regresso a alguma consideração de tradições históricas particulares, nas colagens pós-modernas. Mas, precisamente, que "tradições" são essas ainda? Lembrando-me do exemplo dum outro hotel em S. Miguel, que num seu jardim interior e no mobiliário evoca o Extremo Oriente, o que é que aí se conserva, e se transmite de geração em geração numa tradição particular? A grande disneylandia da arquitectura pós-moderna - em centros comerciais que põem lado a lado colunas gregas e decorações regionais, etc. - me parece propor também, com o modernismo, a desvinculação de alguma tradição cultural, mas já não pela ultrapassagem destas em ordem a um plano universal, antes pela desmultiplicação, em cada sítio, de inúmeras daquelas tradições - creio que é a mais subtil perversão do projecto romântico...
Entretanto a tese geral de D. Harvey é que as grandes concepções sobre o homem, etc., são mediadas para a sua aplicação nomeadamente económica por determinações espaciais e temporais, onde se destacam as arquitectónicas. Por exemplo o uso moderno da perspectiva, terá sugerido a organização vertical das empresas fordistas na II Revolução Industrial, ao passo que a desmultiplicação de perspectivas e de planos irreconciliáveis (Picassso, David Salle...) terá sugerido depois a organização mais horizontal e segmentada no pós-fordismo.
... Mas 1 fim de semana não me chega para mais do que balbuciar a pergunta (e pressupondo provisoriamente aquela tese): por onde andaremos nós hoje? Sem aqueles movimentos contínuos - horizontais, curvos, sem arestas - sem aquela evidenciação confiante dos novos materiais, mas também sem materiais e formas de uma tradição determinada, o que nos propomos, o que sugerimos, com a determinação que fazemos arquitectonicamente do espaço que habitamos?

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