quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Da crise das humanidades e do seu desafio

Voltando a Jerome Kagan sobre The Three Cultures (v. Do determinismo mental e da medição do fluxo sangu... ), agora no capítulo 5 dedicado à situação actual das humanidades (da literatura, filosofia hermenêutica, historiografia narrativista... às artes), confesso que desta feita me parece algo desconexo e diria até menos desenvolvido, ou certeiro do que creio poderia ser. Em todo o caso assinalarei aqui 2 notas de Kagan sobre essa situação, e sobre o que ainda assim as humanidades sugerirão hoje sobre esta civilização.
a) Por comparação às ciências sociais e humanas, e ainda mais às ciências naturais, matemática e tecnologias, as humanidades não merecem hoje consideração pública. Este psicólogo americano julga que isso se deve i) à valorização da produção e da prática, nas quais os agentes das humanidades não se encontram directamente envolvidos; ii) à TV 24h/dia (acrescentemos a internet, as redes sociais...) que substituiu a função de alargamento dos horizontes antes confiada à literatura; iii) ao relativismo pós-moderno, que, recusando quaisquer critérios de validação externos a cada discurso em avaliação, não permite distinguir algumas obras como particularmente merecedoras de atenção; e iv) as ciências sociais e depois as neurociências começaram a abordar temas das humanidades mediante experiências controladas e já não pela intuição ou pela interpretação de discursos.
b) Todavia, aponta Kagan, esse desprestígio constituirá um empobrecimento na medida em que "humanists perform several critical funtions. They remind the society of its contradictions, articulate salient emotional states, detect changing cultural premises, confront their culture's deepest moral dilemmas, and document the unpredictable events that punctuate a life or historical era" (op.cit.: 231).
Pela minha parte confesso que, se por um momento sinto a pena pelo desaparecimento do que durante um certo período foi notável - no que não será mais do que a emoção perante o tempo e o fim ou a morte - e seguramente que as humanidades ocidentais o foram desde os Gregos aos grandes romancistas de meados do séc. XX, logo no momento seguinte penso que é próprio ao tempo que sucumba o que perdeu a vitalidade, de modo que se as humanidades deixaram de oferecer o que outrora lhes fez merecer a consideração pública então é justo que sejam abandonadas (a não ser pelos historiadores do período em que floresceram). Em troca, se retomarem essa oferta, simplesmente não correrão perigo de extinção.
Ora não vejo que essas critical functions não possam ser implementadas por vias mais verificáveis do que a tais intuição e interpretação de textos. Diria pois que, se a isso a si próprias se reduzirem as humanidades, é justo que desapareçam.
Directamente contra a pós-modernidade apontada no ponto (iii) da alínea (a), suponho porém que as humanidades se constituem ainda por um traço processual além de quaisquer outros funcionais, ou de quaisquer objectivos a que se proponham: o de (em linguagem metafísica medieval) reunirem o universal e o singular. Ou seja, de cada vez numa situação nova, exemplificarem as grandes questões da existência humana numa personagem, num contexto social e ambiental determinado, num conjunto de opções, comportamentos e consequências. Ainda há dias, conversando sobre isto com a Maria João Cavaco, ela observou como a literatura americana (do norte e do sul) apresenta personagens frente ao espaço aberto, onde se joga, numa simplicidade às vezes crua, o enfrentamento pessoal da vida e da morte. E lembrámos Hemingway, Jack London, Guimarães Rosa... e depois o Mestre: Tolstoi.
Os pós-modernos negam, claro, essa possibilidade da singularidade se transcender na exemplificação dum universal... Não serei eu a lamentar que por esse caminho as humanidades sigam para as prateleiras do museu da história civilizacional.

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