sábado, 30 de janeiro de 2010

A ciência tal qual ela se faz e vive

O Nº 438 da revista La Recherche (Fevereiro, 2010: 68, 69) traz um Portrait que me parece muito sugestivo sobre o exercício das ciências. É um pequeno artigo sobre a vida e obra do psicólogo canadiano, de origem estónia, Endel Tulving, que em Novembro último recebeu o prémio Pasteur-Weizman-Servier pelo seu estudo da memória humana.
Sobre esta faculdade, a autora atribui-lhe a distinção entre codificação, armazenamento e recuperação (na memória de longo prazo), além das memórias de curto prazo (ou de trabalho), procedimental (do saber-fazer) e perceptiva (sensorial), e ainda da distinção geral entre memória episódica (dos acontecimentos espácio-temporais) e semântica (dos conceitos, expressos verbalmente, exemplificados nos acontecimentos). À excepção desta última distinção, já vi aquelas outras reportadas a autores como Baddeley e Hitch, ou Craig e Lockhart, não conheço a história da psicologia recente para julgar sobre direitos de autor, de qualquer modo Tulving é um dos nomes que aparece na pista da concepção da memória multíplice em vez de unitária.
Mas o que creio vir aqui mais a propósito é a dimensão vivencial do artigo. Tulving, agora com 82 anos, fugiu da Europa devastada para Toronto em 1949, onde foi trabalhador rural, motorista... enquanto se graduava em psicologia. Em 1956 começou a trabalhar na Universidade de Toronto, doutorou-se em Harvard com um estudo sobre a visão, e regressou ao Canadá onde trocou como objecto de estudo esta faculdade pela memória - pela comezinha razão de falta de recursos... ou (como sugere F. Eustache) pela relevância mesmo que inconsciente da memória para um emigrante? Fosse por que razão fosse, como ele próprio declara um dia ouviu num congresso que se poderia substituir a hipótese vigente de uma consequencialidade da memória semântica em relação à episódica (aquela resultaria desta). Entretanto já se observara por exemplo que até certa idade as crianças memorizavam (semanticamente) aprendizagens pese embora não recordassem (episodicamente) o que haviam feito na véspera... Para ligar estas 2 pontas soltas, Tulving propôs então pensar a memória como se ela fosse um conjunto de faculdades e não como se fosse uma única - separando a m. episódica da semântica. Numa sua citação: "je propose de noveaux concepts seulement si mes observations contredisent les anciens" (p. 68).
Tenho vindo aqui a insistir nesta possibilidade de entender (contextualista e pragmaticamente) os conceitos e teorias como instrumentos para a solução de problemas, e não como representações de uma realidade - ainda há dias apontei isso em relação à matemática. A biografia científica deste psicólogo é mais um exemplo: da aventura da emigração e do esforço e partilha da vida entre a enxada e os livros de psicologia, ao desenvolvimento conceptual da hipótese das memórias episódica e semântica, passando pelo reconhecimento da potencialidade conceptual duma deixa ouvida num congresso, assim se fez, entre trabalhos, intuições indistintas, e acasos, a sua obra. Esta não resultou de alguma intuição de 1ªs verdades - como que reveladas pela Natureza, senão por Deus, a este génio iluminado - de onde depois se deduziriam todas aquelas teorias. Ao contrário, foi feita por um homem, condicionado pela respectiva comunidade, com todos os ingredientes que compõem a vida de qualquer outro... mas não faltando o do arrojo de pensar por si mesmo!
Julgo que há muito a aprender em exemplos como este pelos Governos, pelas Escolas, pelas famílias, pelos indivíduos dos países que, querendo os resultados que a investigação fundamental e as tecnologias de ponta facultam, historicamente têm tendido porém a desvalorizar, se não mesmo condenar, a crítica e o arrojo de que Endel Tulving é mais um exemplo, na crença, algo mágica, de que as teorias são coisas que descem misteriosamente sob alguns iluminados...

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