domingo, 22 de novembro de 2009

À atenção, no "século chinês"

É precisamente na sua aparência de concordância, de abrangência, que o artigo do ex-Embaixador chinês na ONU, Wu Jianmin, "A Chinese perspective on a changing world" (in: http://www.theglobalist.com/StoryId.aspx?StoryId=8035) me parece sugestivo sobre a discordância radical entre a civilização sínica e a ocidental.
O autor começa por apontar os PIB's asiático e ocidental antes do séc. XVIII, daí até ao fim do séc. XX, e as suas evoluções nas últimas décadas - é sabido: a China terá acumulado a maior riqueza mundial até à Revolução Industrial, depois a Europa e América do Norte ultrapassaram-na, para agora se perspectivar o regresso à antiga correlação. Juntando-lhe a habitual desproporção demográfica, depois do séc. inglês e do séc. americano o séc. actual será, senão o séc. asiático, pelo menos o do Pacífico. Wu aponta porém uma diferença abissal entre essas dominações: "When Europe and America rose, they did it at the expense of others — there were many conflicts and wars. But today, Asia is rising with the rest of the world rather than against it". Como acentua noutra passagem, a cultura ocidental - nomeadamente americana - constitui-se e define-se por oposição a algum inimigo, é essencialmente competitiva... para não dizer belicosa; já a cultura sínica será essencialmente cooperativa, e portanto pacífica.
Parece-me ser verdade que a cultura moderna do homo faber colocou o Ocidente em contraposição a uma Natureza cujos recursos poderiam ser ilimitadamente exauridos, que essa contraposição também se verificou na 1ª Globalização em relação às populações africanas escravizadas nas plantações americanas,... ou nos impérios coloniais durante a 2ª Globalização. Todavia, por outro lado, essa cultura de concorrência é também o resultado da simples aceitação da diferença, nomeadamente de interesses, crenças, etc., que se respeitam na democracia liberal representativa, e que origina a criatividade, que resulta na inovação, que impulsionará o crescimento económico.
Já a harmonia chinesa foi conseguida, por exemplo, primeiro com os blindados em Tiananmen, e depois continua sendo feita com o silenciamento pelo regime desse massacre. O continuado culto a Mao Tse Tung, independentemente das dezenas de milhão que morreram em resultado das suas opções, é outro exemplo, etc. Qualquer harmonização padece aliás deste pormaior: quem é que estabelece o rumo a que todos passam a ter que se harmonizar?... E, economicamente, a China é dita ser "a fábrica do mundo", não o seu "laboratório", veremos o que saberá fazer quando, como super-potência, não lhe restar apenas desenvolver pistas abertas por outrem.
Sob essas denúncias de parte a parte, abre-se pois uma clivagem conceptual: harmonia holística, organicista... esmagadora das diferenças, versus respeito por estas últimas... criando-se conflitos. É na própria perspectivação preconceituada, unilateral desta divergência nas concepções do mundo que se abre a discordância civilizacional de base, entre um chinês para quem a concorrência é obviamente a destruição, e os ocidentais para quem esta se encontra obviamente na harmonia imposta. Por outras palavras, a diferença não está entre a paz e o conflito, como pretende aquele académico chinês, mas no próprio sentido que se dá a esses termos.
Os resultados sugerem que asiáticos e ocidentais têm virtualidades, uns e outros têm debilidades - cada civilização poderá pois rever-se no espelho das outras para se melhorar. Mas seja politicamente no momento de optar pelo regime político, seja científico-economicamente no momento de valorizar (+ ou -) o espírito crítico - do conflito na criatividade... - haverá que escolher entre uma tendência e a outra. Entre a primazia da harmonia, tolerando a diferença apenas enquanto se não questione a ordem global, ou a aceitação da diferença, no esforço para se construírem caminhos comuns na base daquelas, que assim nunca se renegam.
De qualquer modo o tempo da unicidade cultural ocidental - pelo menos para as opções das pessoas e populações do Atlântico, do Brasil à Europa (os africanos têm reivindicado uma cultura independente pelo que escolherão à parte) - terá acabado. Na próxima década e seguintes, nós que herdamos a pista ocidental provavelmente teremos que escolher entre um simples (e mais fácil) unilateralismo cultural puro e duro, na valorização ingénua das diferenças,... de duvidosos resultados, e uma mais complexa, e mais custosa (!), articulação destas com a harmonia holística possível.

Sem comentários:

Enviar um comentário