O filósofo e sociólogo Gilles Lipovetsky veio agora a Aveiro participar do colóquio "Consumo - que futuro?", onde voltou a apresentar a sua tese sobre a Era do hiperconsumo - como caracteriza o actual momento civilizacional, e cuja síntese remeto para Alexandra Silva em http://ppresente.wordpress.com/textos/a-sociedade-do-hiperconsumo/. Em geral, enfim, considera que desde as décadas de 1980/90 "felicidade" foi reduzida a "soma de prazeres" (cf. Crise económico-financeira, transhumanismo... e a ...), e que o critério se tornou em absoluto o consumo, que se quer sempre mais e diferente, ao ponto de até os pobres de hoje se constituírem como consumidores, ainda que apenas potenciais! 2 Observações:
A) Em plena globalização também cultural, o projecto de vida aí denunciado é a razão da minha cautela (para não dizer pessimismo...) esta semana em Para a conferência de Copenhaga... ou há 20 anos em "Da esperança na salvaguarda da Natureza" (14/04/1.... Pois, ainda para mais em democracias, não será possível implementar políticas sociais e económicas que não satisfaçam o homo consumericus de que fala Lipovetsky. E a absolutização - que já não apenas prioridade - do valor do consumo anula na prática qualquer limitação da oferta, e portanto da produção que recorre à delapidação de quaisquer recursos naturais como a água potável, o ar não poluído, etc. A actual civilização global, que assumiu o valor do consumo a que o Ocidente chegou depois de na Modernidade ter valorizado o fazer, assemelha-se pois a um gigantesco Titanic... cuja única esperança é que todos os cientistas que há décadas apontam o iceberg do equilíbrio ecológico global estejam enganados. Esperança que o homo consumericus herdou e desenvolveu do seu pai homo faber, pois se para o fazer o saber já pouco importava, então para o consumir, e num consumo em função do prazer imediato, isso (o saber) já nem se compreenderá o que seja!
1ª Consequência resolutiva: se o problema é cultural, não é dos políticos (tanto menos quanto mais dependerem das respectivas populações) que se poderá esperar uma solução consistente. Apenas os agentes culturais a poderão lançar... para depois se enredarem na questão retórica que aqui apontei em Da influência cultural e da retórica... mas também...!
B) Para a terapia cultural atrás apelada, valerá a pena voltar a pensadores das primeiras décadas do séc. XX como Martin Heidegger, Ortega y Gasset, etc., que nessa altura denunciaram o lançamento deste homo consumericus - Veja-se o modo inautêntico de existir, segundo aquele filósofo alemão, e a característica que este logo lhe reconheceu de sede da novidade pela novidade - qualquer coisa como o primo de Harry Potter perante não a qualidade dos presentes, nem sequer a sua quantidade, mas tão só a progressão numérica desta quantidade em relação à do ano anterior (!). Há muito, pois, que as elites culturais vinham percebendo e alertando para o que hoje vivemos... ou seja, para as suas consequências amanhã ("amanhã" não significa para os nossos trisnetos, significa nesta próxima década, mais ainda na seguinte...). Nem por isso no entanto a civilização ocidental, e depois o mundo, deixou de evoluir nesta direcção. Uma pois de 2, senão ambas: ou, tendo essas elites acertado no movimento em curso, não lhe perceberam a raiz, pelo que não atacaram a cabeça da serpente mas tão só uma outra parcela do seu corpo; ou até se aperceberam do que estaria causando esse movimento em curso, mas faltou-lhes a capacidade retórica de se fazerem ouvir - lembremos-nos aliás da "rebelião das massas" de que se queixou Ortega... Num nosso regresso ao estudo dessas obras de há quase 1 séc., julgo que devemos atender a estas 2 pistas.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
1 Pequena nota à ética evolucionista
A ética evolucionista consiste numa extensão do biologismo à esfera dos valores e escolhas humanas. Por sua vez, o biologismo, de resto como o historicismo (ex. marxista), é uma instância da forma determinista. Ou seja, o valor epistemológico daquela ética depende à partida do valor geral que se reconheça ao determinismo, e depois, em particular, à aplicação do determinismo ao âmbito das acções humanas.
A contraposição entre determinismo e indeterminismo é o que procuro aqui explorar nas etiquetas ciências - reducionismo e ciências - emergentismo.
No post anterior assinalei que a razão pode ser enganadora por tender para o menor esforço... Mas também será autodestrutiva, ou inconsistente, uma teoria que, de tão completa, se torne praticamente disfuncional ou inaplicável aos problemas que se propunha resolver!
E lá voltamos, nas virtudes epistémicas também, à prudência aristotélica, aquela arte de encontrar o justo meio...
A contraposição entre determinismo e indeterminismo é o que procuro aqui explorar nas etiquetas ciências - reducionismo e ciências - emergentismo.
No post anterior assinalei que a razão pode ser enganadora por tender para o menor esforço... Mas também será autodestrutiva, ou inconsistente, uma teoria que, de tão completa, se torne praticamente disfuncional ou inaplicável aos problemas que se propunha resolver!
E lá voltamos, nas virtudes epistémicas também, à prudência aristotélica, aquela arte de encontrar o justo meio...
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terça-feira, 27 de outubro de 2009
Altruísmo e evolucionismo (2)
Em Altruísmo?... (1) coloquei o link para uma experiência supostamente significativa da verificação de altruísmo entre chimpanzés - no seio da discussão que se poderia formular assim: eticamente (e não só), são os homens que se aproximam dos macacos, ou são os macacos que se aproximam do homem? - somos eminentemente animais, determinados por uma natureza, ou escapamos a esta última e até os chimpanzés quase o conseguem?
Emocionalmente (se calhar com o orgulho à cabeça destas emoções) preferimos a 2ª hipótese. Mas racionalmente - que a razão é como a água, tende a deslizar para o mais simples - a 1ª é que é apetecível. Pois nos permite descansar nas regras daquela determinação natural - ex. trabalho para comer, como para sobreviver, e sobrevivo... para sobreviver, ponto. Enquanto a 2ª nos deixa perante o enigma de inúmeras razões que se jogam no caldo caótico da liberdade - coisa nada aconselhável a uma boa digestão e noite sem insónias.
Dado este conselho, viremos-nos para a hipótese evolucionista. Desde logo o altruísmo se constituiu num problema para uma explicação da evolução das espécies que parte do postulado do primado do esforço individual pela sobrevivência, pois aquela atitude contradiz este esforço.
A esta objecção responderam porém os biólogos com exemplos como o das abelhas que se sacrificam em defesa da colmeia atacada. Os seus genes serão assim passíveis de transmissão, ainda que mediante outros indivíduos.
Caso no entanto diferente do humano, pois alguns de nós sacrificam-se a favor de outros com quem apenas partilham o genoma da espécie, e até a favor de outras espécies (ex. ecologistas radicais), por vezes contra elementos das suas famílias (com quem partilham mais genes).
Entrando já na sociologia, ou na filosofia política... os ex(!)-biólogos evolucionistas responderam com a proposta de um altruísmo recíproco: coça-me as costas que eu coço-te as tuas. 1ª objecção: este acordo estabelece-se em pares de indivíduos, não faz grande sentido em grupos grandes nos quais quem dê não consegue controlar se alguém lhe retribuirá o favor; 2ª objecção - experiências como a acima assinalada sugerem que até os primatas se dispõem a coçar as costas de quem não coçará as deles (além da repulsa emocional que grande parte dos seres humanos experimenta pelo eugenismo nazi contra os deficientes mentais, apesar destes não poderem retribuir qualquer altruísmo, etc.).
Os filósofos evolucionistas podem ainda responder que esta condenação do eugenismo, e em geral a compaixão pelas vítimas, representará afinal a prudência de quem não tem a garantia de que um dia não será ele o alvo de qualquer outro critério menorizador - "judeu", "preto", "mulher"... para arranjar rótulos de destruição nunca aos seres humanos faltou imaginação! A punição altruísta - castigo dos agressores mesmo que de vítimas que não me tocam - será então o mecanismo com que a evolução respondeu a esta hobbesiana condição do homem ser o lobo do homem...
Parece-me que se segue por mau caminho se se continua o debate a esse nível: a imaginação para estas objecções e contra-objecções não será menor do que a anterior. Antes disso, a crítica mais imediata que creio justificar-se ao biologismo (que procura reduzir todos os fenómenos humanos à teoria da selecção natural) é que esta teoria ética não serve para nada! Isto é, me parece que ela explica o que nem estava em causa porque tem sido explicado de uma e outra maneira, e não aborda o que resistia a essas anteriores explicações. A saber, porque é que certos indivíduos, em certas situações, são altruístas? Que o resultado geral da existência de tais actos é a facilitação da continuação e evolução dos conjuntos que contêm elementos que optam por tais actos, isto tem sido reconhecido e formalizado por diversas abordagens além da biologista. O que restou como problema é, pelo lado cognitivo, porque é que um dado indivíduo, nesta ou naquela situação, opta a favor ou contra o que a prazo é melhor para a continuação (sobrevivência), e, pelo lado prescritivo, como é que se pode induzir esta opção em detrimento da destrutiva?
Tenho na minha lista de leituras por exemplo a obra colectiva dirigida por C. Clavien e C. El-Bez, Morale et Évolution Biologique - Entre Déterminisme et Liberté, Lausanne: Presses Polytechniques et Universitaires Romandes, 2007; mas até lá fico com a suspeita de que a ética evolucionista vem muito, mas muito atrasada em relação ao que continua em cima da mesa.
Emocionalmente (se calhar com o orgulho à cabeça destas emoções) preferimos a 2ª hipótese. Mas racionalmente - que a razão é como a água, tende a deslizar para o mais simples - a 1ª é que é apetecível. Pois nos permite descansar nas regras daquela determinação natural - ex. trabalho para comer, como para sobreviver, e sobrevivo... para sobreviver, ponto. Enquanto a 2ª nos deixa perante o enigma de inúmeras razões que se jogam no caldo caótico da liberdade - coisa nada aconselhável a uma boa digestão e noite sem insónias.
Dado este conselho, viremos-nos para a hipótese evolucionista. Desde logo o altruísmo se constituiu num problema para uma explicação da evolução das espécies que parte do postulado do primado do esforço individual pela sobrevivência, pois aquela atitude contradiz este esforço.
A esta objecção responderam porém os biólogos com exemplos como o das abelhas que se sacrificam em defesa da colmeia atacada. Os seus genes serão assim passíveis de transmissão, ainda que mediante outros indivíduos.
Caso no entanto diferente do humano, pois alguns de nós sacrificam-se a favor de outros com quem apenas partilham o genoma da espécie, e até a favor de outras espécies (ex. ecologistas radicais), por vezes contra elementos das suas famílias (com quem partilham mais genes).
Entrando já na sociologia, ou na filosofia política... os ex(!)-biólogos evolucionistas responderam com a proposta de um altruísmo recíproco: coça-me as costas que eu coço-te as tuas. 1ª objecção: este acordo estabelece-se em pares de indivíduos, não faz grande sentido em grupos grandes nos quais quem dê não consegue controlar se alguém lhe retribuirá o favor; 2ª objecção - experiências como a acima assinalada sugerem que até os primatas se dispõem a coçar as costas de quem não coçará as deles (além da repulsa emocional que grande parte dos seres humanos experimenta pelo eugenismo nazi contra os deficientes mentais, apesar destes não poderem retribuir qualquer altruísmo, etc.).
Os filósofos evolucionistas podem ainda responder que esta condenação do eugenismo, e em geral a compaixão pelas vítimas, representará afinal a prudência de quem não tem a garantia de que um dia não será ele o alvo de qualquer outro critério menorizador - "judeu", "preto", "mulher"... para arranjar rótulos de destruição nunca aos seres humanos faltou imaginação! A punição altruísta - castigo dos agressores mesmo que de vítimas que não me tocam - será então o mecanismo com que a evolução respondeu a esta hobbesiana condição do homem ser o lobo do homem...
Parece-me que se segue por mau caminho se se continua o debate a esse nível: a imaginação para estas objecções e contra-objecções não será menor do que a anterior. Antes disso, a crítica mais imediata que creio justificar-se ao biologismo (que procura reduzir todos os fenómenos humanos à teoria da selecção natural) é que esta teoria ética não serve para nada! Isto é, me parece que ela explica o que nem estava em causa porque tem sido explicado de uma e outra maneira, e não aborda o que resistia a essas anteriores explicações. A saber, porque é que certos indivíduos, em certas situações, são altruístas? Que o resultado geral da existência de tais actos é a facilitação da continuação e evolução dos conjuntos que contêm elementos que optam por tais actos, isto tem sido reconhecido e formalizado por diversas abordagens além da biologista. O que restou como problema é, pelo lado cognitivo, porque é que um dado indivíduo, nesta ou naquela situação, opta a favor ou contra o que a prazo é melhor para a continuação (sobrevivência), e, pelo lado prescritivo, como é que se pode induzir esta opção em detrimento da destrutiva?
Tenho na minha lista de leituras por exemplo a obra colectiva dirigida por C. Clavien e C. El-Bez, Morale et Évolution Biologique - Entre Déterminisme et Liberté, Lausanne: Presses Polytechniques et Universitaires Romandes, 2007; mas até lá fico com a suspeita de que a ética evolucionista vem muito, mas muito atrasada em relação ao que continua em cima da mesa.
domingo, 25 de outubro de 2009
Para a conferência de Copenhaga
Daqui a menos de 2 meses será negociado em Copenhaga um protocolo que substituirá o de Quioto. (Para assentarmos a credibilidade que esse outro compromisso terá valerá a pena começarmos por avaliar o grau de cumprimento do que agora termina...)
Jean Remy Davée Guimarães dá conta em http://cienciahoje.uol.com.br/155082 da preparação das posições brasileiras para essa conferência. Penso que são particularmente importantes não apenas pela relevância do Brasil (veja-se a importância ecológica da Amazónia) mas também pelo seu crescente peso simbólico: entre os BRIC (além da Rússia, Índia e China) representa as grandes economias e Estados emergentes no teatro internacional, acrescido ainda (o Brasil) duma extensão ao continente sul-americano que de algum modo acaba por representar. Talvez aquele cronista tenha optado restringir-se às questões estritamente da poluição, e uma outra questão de geopolítica e economia internacional esteja igualmente sendo preparada. Mas se não está, se aquela crónica abarca toda a discussão em curso, então temo que esteja em falta um factor que creio que a médio prazo será determinante:
As democracias espalharam-se, nomeadamente na América do Sul; mesmo nos regimes autoritários asiáticos as populações fazem-se escutar de alguma forma além das instituições democráticas. Sendo assim, mesmo que os Governos destes Estados aceitassem - por exemplo em resultado duma sua corrupção - impor aos respectivos povos um adiamento da sua convergência económica com os Estados desenvolvidos em nome do equilíbrio ecológico mundial, será muito difícil que esses povos o aceitem. A entrada dos BRIC, e outras comunidades como o Islão, no teatro das decisões internacionais - desde a II Guerra monopólio da Europa, EUA, e, em menor medida, da China - arrastará a necessidade de europeus e americanos pagarem também algum preço. Mas ninguém os paga voluntariamente. Isto só acontece quando a posição dos credores é incontornável.
Em Copenhaga, indirectamente, discutir-se-à pois a nova ordem global do Mundo. E além de argumentos específicos sobre emissões de gases poluentes,... os representantes do Brasil deverão estar preparados para discutir as condições de possibilidade de acordos comerciais, etc., pelos quais os países desenvolvidos paguem também o preço da redução de exploração directa dos recursos terrestres nos países em desenvolvimento. De outra forma custa-me a crer que quaisquer acordos ecológicos sejam implementáveis.
P.S. - Só a quem continua a julgar que não vive na Terra, isto é, que os desequilíbrios ecológicos não chegarão ao seu quintal, é que parecerá estranho que um europeu espere bem que os delegados brasileiros a Copenhaga, se possível em cooperação com os argentinos, chilenos... intervenham em ordem a uma tal reorganização do Mundo.
Jean Remy Davée Guimarães dá conta em http://cienciahoje.uol.com.br/155082 da preparação das posições brasileiras para essa conferência. Penso que são particularmente importantes não apenas pela relevância do Brasil (veja-se a importância ecológica da Amazónia) mas também pelo seu crescente peso simbólico: entre os BRIC (além da Rússia, Índia e China) representa as grandes economias e Estados emergentes no teatro internacional, acrescido ainda (o Brasil) duma extensão ao continente sul-americano que de algum modo acaba por representar. Talvez aquele cronista tenha optado restringir-se às questões estritamente da poluição, e uma outra questão de geopolítica e economia internacional esteja igualmente sendo preparada. Mas se não está, se aquela crónica abarca toda a discussão em curso, então temo que esteja em falta um factor que creio que a médio prazo será determinante:
As democracias espalharam-se, nomeadamente na América do Sul; mesmo nos regimes autoritários asiáticos as populações fazem-se escutar de alguma forma além das instituições democráticas. Sendo assim, mesmo que os Governos destes Estados aceitassem - por exemplo em resultado duma sua corrupção - impor aos respectivos povos um adiamento da sua convergência económica com os Estados desenvolvidos em nome do equilíbrio ecológico mundial, será muito difícil que esses povos o aceitem. A entrada dos BRIC, e outras comunidades como o Islão, no teatro das decisões internacionais - desde a II Guerra monopólio da Europa, EUA, e, em menor medida, da China - arrastará a necessidade de europeus e americanos pagarem também algum preço. Mas ninguém os paga voluntariamente. Isto só acontece quando a posição dos credores é incontornável.
Em Copenhaga, indirectamente, discutir-se-à pois a nova ordem global do Mundo. E além de argumentos específicos sobre emissões de gases poluentes,... os representantes do Brasil deverão estar preparados para discutir as condições de possibilidade de acordos comerciais, etc., pelos quais os países desenvolvidos paguem também o preço da redução de exploração directa dos recursos terrestres nos países em desenvolvimento. De outra forma custa-me a crer que quaisquer acordos ecológicos sejam implementáveis.
P.S. - Só a quem continua a julgar que não vive na Terra, isto é, que os desequilíbrios ecológicos não chegarão ao seu quintal, é que parecerá estranho que um europeu espere bem que os delegados brasileiros a Copenhaga, se possível em cooperação com os argentinos, chilenos... intervenham em ordem a uma tal reorganização do Mundo.
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quinta-feira, 22 de outubro de 2009
Altruísmo?... (1)
Sabia que teria que vir a este tema, mas desta feita ainda não farei mais do que apontar uma observação à notícia na CiênciaHoje sobre a interpretação de uma experiência como significativa (esta última) de altruísmo em chimpanzés - v. http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=35994&op=all.
A questão é a seguinte: a ética humanista, de matriz Moderna, postula a liberdade humana, de modo que aceita a possibilidade de nós darmos algo sem estarmos a isso determinados por qualquer causa prévia. Numa palavra, reconhece o altruísmo. Desde logo esse postulado entrou em conflito com o determinismo que, na mesma Modernidade, se postulou para a Natureza. Especialmente a partir da descoberta do ADN, que nos determina biologicamente não só nas nossas características físicas mas também nas psicológicas, ganhou mais força a hipótese de que nos julgamos livres não por o sermos, mas tão só por não nos apercebermos da determinação biológica dos nossos comportamentos. Nesta pista desenvolveu-se a chamada ética evolucionista que, aproveitando a teoria da selecção natural das espécies, tem tentado conceber o altruísmo como um mecanismo seleccionado pela evolução. A saber, os indivíduos que terá calhado formarem-se geneticamente com tal característica terão sobrevivido mais do que os restantes, terão assim procriado mais, transmitindo assim progressivamente aqueles genes, até toda a espécie ser altruísta - mas designando esta palavra um comportamento interessado e determinado, nos antípodas pois do seu significado Moderno! Neste contexto teórico, aquela notícia, no modo como está formulada (nomeadamente pelo uso do termo "altruísmo", que é negado pela ética evolucionista), parece sugerir que afinal serão os postulados humanistas a estenderem-se aos primatas superiores...
Uma de duas: ou bem que o termo "altruísta" significa ali apenas o que a biologia evolucionista (e a ética que lhe corresponde) reconhece a esse termo - e a notícia apenas é compreensível aos iniciados nesta questão actual - ou bem que, numa publicação de divulgação científica, como tal aberta a leigos, e portanto usando a linguagem corrente, pretende-se mesmo sugerir que essa experiência biológica (mais precisamente, etológica) vem dar força afinal à ética humanista.
Então, um de dois reparos: a referida deficiência comunicacional da notícia, se é o caso, exige um esclarecimento como este. Fica aqui feito. Mas uma interpretação da experiência em prol do altruísmo (desinteressado e livre), como porventura terá sido feita até pelos autores da experiência, está errada e carece de correcção: o que esta mostrará - a rigor: parecerá ao observador que mostra - é que aqueles espécimes de chimpanzés não teriam interesses privados nas partilhas mencionadas, logo serão "altruístas". A experiência nada sugere porém quanto à possibilidade deste "altruísmo" ser-lhes geneticamente programado pela evolução da espécie chimpanzé. Ora é isto que a ética evolucionista afirma. Logo aquela experiência não é significativa para a questão do altruísmo tal como esta tem vindo a ser discutida nas últimas 2 décadas.
A questão é a seguinte: a ética humanista, de matriz Moderna, postula a liberdade humana, de modo que aceita a possibilidade de nós darmos algo sem estarmos a isso determinados por qualquer causa prévia. Numa palavra, reconhece o altruísmo. Desde logo esse postulado entrou em conflito com o determinismo que, na mesma Modernidade, se postulou para a Natureza. Especialmente a partir da descoberta do ADN, que nos determina biologicamente não só nas nossas características físicas mas também nas psicológicas, ganhou mais força a hipótese de que nos julgamos livres não por o sermos, mas tão só por não nos apercebermos da determinação biológica dos nossos comportamentos. Nesta pista desenvolveu-se a chamada ética evolucionista que, aproveitando a teoria da selecção natural das espécies, tem tentado conceber o altruísmo como um mecanismo seleccionado pela evolução. A saber, os indivíduos que terá calhado formarem-se geneticamente com tal característica terão sobrevivido mais do que os restantes, terão assim procriado mais, transmitindo assim progressivamente aqueles genes, até toda a espécie ser altruísta - mas designando esta palavra um comportamento interessado e determinado, nos antípodas pois do seu significado Moderno! Neste contexto teórico, aquela notícia, no modo como está formulada (nomeadamente pelo uso do termo "altruísmo", que é negado pela ética evolucionista), parece sugerir que afinal serão os postulados humanistas a estenderem-se aos primatas superiores...
Uma de duas: ou bem que o termo "altruísta" significa ali apenas o que a biologia evolucionista (e a ética que lhe corresponde) reconhece a esse termo - e a notícia apenas é compreensível aos iniciados nesta questão actual - ou bem que, numa publicação de divulgação científica, como tal aberta a leigos, e portanto usando a linguagem corrente, pretende-se mesmo sugerir que essa experiência biológica (mais precisamente, etológica) vem dar força afinal à ética humanista.
Então, um de dois reparos: a referida deficiência comunicacional da notícia, se é o caso, exige um esclarecimento como este. Fica aqui feito. Mas uma interpretação da experiência em prol do altruísmo (desinteressado e livre), como porventura terá sido feita até pelos autores da experiência, está errada e carece de correcção: o que esta mostrará - a rigor: parecerá ao observador que mostra - é que aqueles espécimes de chimpanzés não teriam interesses privados nas partilhas mencionadas, logo serão "altruístas". A experiência nada sugere porém quanto à possibilidade deste "altruísmo" ser-lhes geneticamente programado pela evolução da espécie chimpanzé. Ora é isto que a ética evolucionista afirma. Logo aquela experiência não é significativa para a questão do altruísmo tal como esta tem vindo a ser discutida nas últimas 2 décadas.
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quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Da influência cultural e da retórica... mas também da racionalidade
Recebi ontem o Nº 209 da Sciences Humaines, com o Dossier sobre retórica - não a arte de manipular, menos ainda a verborreia (=diarreia do verbo!), mas a arte de convencer. Neste sentido, a retórica é um tema imprescindível numa reflexão - como aquela em que este blogue se insere - sobre a recuperação duma civilização em crise, ou pelo menos o aproveitamento pessoal do melhor da tradição dessa civilização. Mais precisamente, no âmbito da questão da influência das minorias sobre as maiorias - pois tem sido sempre das 1ªs, e do êxito da sua influência, que têm dependido as resoluções de crises civilizacionais. Na nota 4 de O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências escrevi assim que "uma resposta aos ditos problemas terá hoje então que ser dupla: de um lado, é necessário um ressurgimento das elites – entenda-se: daqueles que contribuem para a resolução consistente de problemas reais. De outro lado, será necessário que estas pessoas (...) logrem atingir o público suficiente para a constituição da massa crítica que implemente as soluções assim propostas… Tivessem os deuses castigado Hércules nos dias que correm, e contentar-se-iam que ele cumprisse apenas este trabalho!".
A propósito duma notável jornalista, política... açoriana da 1ª metade do séc. XX, anotei em http://www.webartigos.com/articles/20696/1/nota-a-influencia-das-minorias-sobre-as-maiorias---o-caso-alice-moderno/pagina1.html os factores gerais que hoje mais se reconhecem àquela influência. Em particular sobre a retórica, acrescento uma nota que temo ser frequentemente esquecida pelos opinion maker, pelos políticos... actuais:
Depois de Aristóteles ter tratado essa disciplina sistematicamente pela 1ª vez, e depois de todos os tratos de polé que foi recebendo (às vezes justamente...), ela foi recuperada no séc. passado por Chaïm Perelman - a leitura do seu Traité de l'Argumentation - La Nouvelle Rhétorique vale mesmo muito a pena. Desde então a teoria reconhece 3 dimensões à capacidade de convencer: o ethos do emissor, isto é, a credibilidade moral de quem propõe algo; o pathos dos receptores, isto é, as emoções com que os receptores seleccionam e interpretam as mensagens propostas; e o logos da proposta, isto é, a sua validade lógico-empírica.
A prática contemporânea porventura parece dar todavia razão a Platão - que desprezava e condenava a retórica por esta se reduzir efectivamente à dimensão do pathos, no seio da qual só por sorte (e sem querer!) se chegará a algo que se possa chamar "verdade". Daí à definição actual por Michel Meyer dessa disciplina como a arte de aproximar os interlocutores, de lhes dissolver as distâncias, vai um passo - veja-se a análise da comunicação por Barack Obama nas pp. 40, 41 no referido Dossier (no seguimento aliás do que aludi em O nó do problema ocidental: Sinais do Império)... Penso no entanto que há uma limitação irredutível nesta orientação de Meyer, ou do platonismo, que nos impõe a velha definição aristotélica:
Para que possa ter havido qualquer eventual aproximação dos diferentes, e para que possam vir a haver outras, é preciso que os interlocutores tenham disponibilidade de tempo, política... é preciso que exista o local físico, os meios técnicos... para a comunicação, etc. Tudo isso se diminui, eventualmente até ao grau zero como nos colapsos civilizacionais, se aquilo que os receptores estiverem emocionalmente dispostos a ouvir - e portanto os discursos que os aproximarem dos emissores - for contraditório com esses factores, com essas condições de possibilidade da comunicação. O caso da oposição entre Alcibíades e Tucídides sobre a estratégia na Guerra do Peloponeso, que mencionei no artigo cujo link se encontra naquele anterior post, é um exemplo clássico desta asneira. A retórica, portanto, queira-se ou não, tem uma dimensão racional - aquela na qual um valor negativo do discurso significa que este está a violar as suas próprias condições de sustentabilidade.
Importa pois avaliar sempre os discursos também nesta dimensão. Importa pois denunciar todos aqueles que porventura mereçam um elevadíssimo valor nas dimensões do pathos, como o de Alcibíades, e até do ethos, mas um valor negativo na do logos, onde Tucídides se ancorou. Mais do que insuficientes, eles são traiçoeiros (mesmo que não seja esta a intenção do emissor).
A propósito duma notável jornalista, política... açoriana da 1ª metade do séc. XX, anotei em http://www.webartigos.com/articles/20696/1/nota-a-influencia-das-minorias-sobre-as-maiorias---o-caso-alice-moderno/pagina1.html os factores gerais que hoje mais se reconhecem àquela influência. Em particular sobre a retórica, acrescento uma nota que temo ser frequentemente esquecida pelos opinion maker, pelos políticos... actuais:
Depois de Aristóteles ter tratado essa disciplina sistematicamente pela 1ª vez, e depois de todos os tratos de polé que foi recebendo (às vezes justamente...), ela foi recuperada no séc. passado por Chaïm Perelman - a leitura do seu Traité de l'Argumentation - La Nouvelle Rhétorique vale mesmo muito a pena. Desde então a teoria reconhece 3 dimensões à capacidade de convencer: o ethos do emissor, isto é, a credibilidade moral de quem propõe algo; o pathos dos receptores, isto é, as emoções com que os receptores seleccionam e interpretam as mensagens propostas; e o logos da proposta, isto é, a sua validade lógico-empírica.
A prática contemporânea porventura parece dar todavia razão a Platão - que desprezava e condenava a retórica por esta se reduzir efectivamente à dimensão do pathos, no seio da qual só por sorte (e sem querer!) se chegará a algo que se possa chamar "verdade". Daí à definição actual por Michel Meyer dessa disciplina como a arte de aproximar os interlocutores, de lhes dissolver as distâncias, vai um passo - veja-se a análise da comunicação por Barack Obama nas pp. 40, 41 no referido Dossier (no seguimento aliás do que aludi em O nó do problema ocidental: Sinais do Império)... Penso no entanto que há uma limitação irredutível nesta orientação de Meyer, ou do platonismo, que nos impõe a velha definição aristotélica:
Para que possa ter havido qualquer eventual aproximação dos diferentes, e para que possam vir a haver outras, é preciso que os interlocutores tenham disponibilidade de tempo, política... é preciso que exista o local físico, os meios técnicos... para a comunicação, etc. Tudo isso se diminui, eventualmente até ao grau zero como nos colapsos civilizacionais, se aquilo que os receptores estiverem emocionalmente dispostos a ouvir - e portanto os discursos que os aproximarem dos emissores - for contraditório com esses factores, com essas condições de possibilidade da comunicação. O caso da oposição entre Alcibíades e Tucídides sobre a estratégia na Guerra do Peloponeso, que mencionei no artigo cujo link se encontra naquele anterior post, é um exemplo clássico desta asneira. A retórica, portanto, queira-se ou não, tem uma dimensão racional - aquela na qual um valor negativo do discurso significa que este está a violar as suas próprias condições de sustentabilidade.
Importa pois avaliar sempre os discursos também nesta dimensão. Importa pois denunciar todos aqueles que porventura mereçam um elevadíssimo valor nas dimensões do pathos, como o de Alcibíades, e até do ethos, mas um valor negativo na do logos, onde Tucídides se ancorou. Mais do que insuficientes, eles são traiçoeiros (mesmo que não seja esta a intenção do emissor).
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domingo, 18 de outubro de 2009
Da alma russa (?)
Em alguns dos últimos posts reportei-me às franjas sul-atlânticas (América latina e Portugal) da civilização ocidental. Mas não podemos esquecer as franjas do outro lado - a Rússia, e os eslavos ortodoxos.
Trago então aqui o que a mim mais sugere uma "alma russa" (que os romances de Tólstoi, de universais que são, ultrapassam-na) - neste concerto de Rachmaninov, em particular, a abertura:
Trago então aqui o que a mim mais sugere uma "alma russa" (que os romances de Tólstoi, de universais que são, ultrapassam-na) - neste concerto de Rachmaninov, em particular, a abertura:
sábado, 17 de outubro de 2009
A ética... e a identidade lusófona
Reparo agora que apresentei o filme de Joaquim Leitão no post anterior de forma substancialmente distinta da apresentação no próprio trailer do filme: nesta, informa-se que o pai é despedido, e a seguir introduz-se os acontecimentos que se sucedem e as emoções que acometem quem os sofre; a minha filha (que a educação de anos alguma marca traz) centrou-se na acção do homem (o pai) cuja escolha leva àquele despedimento, e o resto torna-se assim a história, não de meras emoções, mas de como um homem, e os seus próximos, integraram uma escolha dele num momento determinante, e assim construíram as respectivas personalidades.
Uma é a história do agridoce fado dos sujeitos de um destino que os ultrapassa, outra é a história de quem, na sua situação, se escolhe, e se constrói a si mais à situação que sucederá à primeira.
Ai Chico ("Esta terra ainda vai cumprir seu ideal..."), não é com as primeiras histórias, não é na base de corações líricos, por menos que fosse a sífilis, que terra alguma cumprirá o seu ideal!...
Uma é a história do agridoce fado dos sujeitos de um destino que os ultrapassa, outra é a história de quem, na sua situação, se escolhe, e se constrói a si mais à situação que sucederá à primeira.
Ai Chico ("Esta terra ainda vai cumprir seu ideal..."), não é com as primeiras histórias, não é na base de corações líricos, por menos que fosse a sífilis, que terra alguma cumprirá o seu ideal!...
Da escolha ética. Do sentido da vida
A Madalena foi ontem com o namorado ver o novo filme de Joaquim Leitão. Há pouco ao almoço contou-me a intriga: numa final em futebol o árbitro marca uma grande penalidade que o treinador favorecido percebe ser falsa, a tal ponto que terá havido corrupção, e manda o seu jogador falhar o remate. Naturalmente - que a acção se não passa em Inglaterra!... - é despedido do clube e ostracizado no futebol de alta competição. Empobrece. A mulher abandona-o. O filho sofre a descida de classe sócio-económica. O ex-treinador entra em depressão, e quando já não consegue apoiar mais o filho, é este que cuida do pai. Que volta a encontrar um sentido para a sua vida e trabalho, mas no treino de jovens excluídos em divisões secundárias, não volta à alta competição.
Assim são as escolhas: umas levam a uns resultados, outras levam a outros, no fim nunca tudo se dissolve como se a escolha afinal fosse só aparente! Daí a necessidade da ética - a disciplina que visa assinalar os valores que orientam as escolhas cujos resultados se revelam em geral os melhores; ainda que para lá chegar a médio prazo seja preciso pagar um preço a curto prazo.
Resta saber com que critério se determina "o melhor"... O do reconhecimento social, o do prémio que no fim não há-de faltar, como o filme de Joaquim Leitão bem mostra, fora das histórias infantis isso é coisa que não costuma acontecer.
Aqui fica o trailer:
Assim são as escolhas: umas levam a uns resultados, outras levam a outros, no fim nunca tudo se dissolve como se a escolha afinal fosse só aparente! Daí a necessidade da ética - a disciplina que visa assinalar os valores que orientam as escolhas cujos resultados se revelam em geral os melhores; ainda que para lá chegar a médio prazo seja preciso pagar um preço a curto prazo.
Resta saber com que critério se determina "o melhor"... O do reconhecimento social, o do prémio que no fim não há-de faltar, como o filme de Joaquim Leitão bem mostra, fora das histórias infantis isso é coisa que não costuma acontecer.
Aqui fica o trailer:
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
E já agora: Madeleine Peiroux!...
... que se houver ainda meio degrauzinho acima de Cohen é lá que ela estará!
Leonard Cohen!
Já tinha calhado incorporar aqui video clips de Chico Buarque, Chick Corea, Mahler e Rodrigo Leão - além do canto gregoriano, de Vivaldi, Mozart, Tchaikovsky, Gershwin e Rui Veloso que escolhi para Porto: Uma viagem pelo Ocidente. Começava a ser demais não surgir qualquer motivo para trazer Leonard Cohen! Foi o caso do post anterior, com a citação sobre o sabor de um morango, pois na nota 13 que desenvolve essa pista o motivo que usei foi precisamente a audição das baladas deste músico - que as tenho quase todas no computador e tanta vez ouvi antes ou depois, além de durante a escrita daquele ensaio.
Julgo valer a pena ver e ouvir o video oficial desta música - por não estar disponível para incorporação apenas posso incluir aqui o respectivo link: http://www.youtube.com/watch?v=Y_PIadFsvDk&feature=related. São imagens tão românticas, como poderia dizer Fernando Pessoa, que serão ridículas... a quem no romance ainda for verde.
Cérebro (e mente): da quantidade à qualidade!...
Estamos ambos, eu e o leitor (cada um no seu tempo e sítio), a ver um monitor. Isto é, vivemos a percepção deste rectângulo, iluminado, com cores diferentes e riscos que nos lembramos constituírem signos (letras), etc. Todavia a pista que a biologia seguiu para explicar essa vivência tem sido a de a reduzir a elementos do cérebro - os neurónios - e aos processos - electroquímicos - que se verificam nas suas ligações - as sinapses. Ou seja, tenta-se explicar a vivência destas nossas percepções mediante uma correspondência de cada 1 dos seus momentos - a visão destes riscos pretos agora aqui, a memória da sua função significante... - a um processo electroquímico num conjunto daquelas células nervosas.
Neste contexto poderá parecer definitivo o projecto de replicação total das funções cerebrais, obtendo assim um modelo de todos os processos a que as nossas vivências corresponderão - v. http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=34707&op=all#cont. Se bem percebo a notícia, porém, o próprio Henry Markram terá assinalado que "o grande desafio será compreender como é que padrões eléctrico, magnético ou químicos convertem a nossa percepção da realidade". Ou seja, como escrevi em O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências, é "necessário explicar o modo como os processos electroquímicos são experimentados qualitativamente – ex. como se passa de uma certa quantidade eléctrica ao sabor de um morango" (p. 56).
E esta explicação penso que remeterá para a questão de fundo: a relação entre o órgão físico, o cérebro, empiricamente tratável, e o postulado órgão lógico das nossas vivências qualitativas, a mente, ou como antes se dizia, o espírito. Isto é, que correspondência é essa que se estabelece entre cérebro e mente? Que há alguma, isso é reconhecido desde que se constatou a consequência mental de certas lesões cerebrais - ex. a destruição duma certa zona do cérebro torna as vítimas capazes de interpretar o que lhes dizem mas incapazes de articularem os sons duma resposta. Isto não significa porém que a correspondência seja bionívoca - que a cada vivência (visão destes riscos, etc.) corresponda um e só um processo electroquímico (num e só nesse conjunto de neurónios). Com efeito, por um lado os sabores resultantes de 2 dentadas consecutivas num mesmo morango - praticamente idênticos - eventualmente serão cerebralmente desenvolvidos em zonas diferentes; por outro lado, eventualmente 2 processos consecutivos quantitativamente idênticos, nas mesmas sinapses, darão azo a vivências mentais diferentes. Parecendo muitíssimo pouco provável a inexistência duma correspondência cérebro-mente, abrem-se assim 3 hipóteses: a correspondência i) é bionívoca, ii) orienta-se do cérebro para a mente (mas não o contrário), iii) orienta-se da mente para o cérebro (mas não o contrário). E depois para que isto seja praticamente relevante (v. a referida notícia na CiênciaHoje) não basta determinar o sentido da correspondência, é preciso traçar o modo como esta ocorrerá.
Muito faltará pois para além duma eventual mera replicação das funções cerebrais.
Neste contexto poderá parecer definitivo o projecto de replicação total das funções cerebrais, obtendo assim um modelo de todos os processos a que as nossas vivências corresponderão - v. http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=34707&op=all#cont. Se bem percebo a notícia, porém, o próprio Henry Markram terá assinalado que "o grande desafio será compreender como é que padrões eléctrico, magnético ou químicos convertem a nossa percepção da realidade". Ou seja, como escrevi em O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências, é "necessário explicar o modo como os processos electroquímicos são experimentados qualitativamente – ex. como se passa de uma certa quantidade eléctrica ao sabor de um morango" (p. 56).
E esta explicação penso que remeterá para a questão de fundo: a relação entre o órgão físico, o cérebro, empiricamente tratável, e o postulado órgão lógico das nossas vivências qualitativas, a mente, ou como antes se dizia, o espírito. Isto é, que correspondência é essa que se estabelece entre cérebro e mente? Que há alguma, isso é reconhecido desde que se constatou a consequência mental de certas lesões cerebrais - ex. a destruição duma certa zona do cérebro torna as vítimas capazes de interpretar o que lhes dizem mas incapazes de articularem os sons duma resposta. Isto não significa porém que a correspondência seja bionívoca - que a cada vivência (visão destes riscos, etc.) corresponda um e só um processo electroquímico (num e só nesse conjunto de neurónios). Com efeito, por um lado os sabores resultantes de 2 dentadas consecutivas num mesmo morango - praticamente idênticos - eventualmente serão cerebralmente desenvolvidos em zonas diferentes; por outro lado, eventualmente 2 processos consecutivos quantitativamente idênticos, nas mesmas sinapses, darão azo a vivências mentais diferentes. Parecendo muitíssimo pouco provável a inexistência duma correspondência cérebro-mente, abrem-se assim 3 hipóteses: a correspondência i) é bionívoca, ii) orienta-se do cérebro para a mente (mas não o contrário), iii) orienta-se da mente para o cérebro (mas não o contrário). E depois para que isto seja praticamente relevante (v. a referida notícia na CiênciaHoje) não basta determinar o sentido da correspondência, é preciso traçar o modo como esta ocorrerá.
Muito faltará pois para além duma eventual mera replicação das funções cerebrais.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Dólar fraco... ou o sol na eira, que queima o nabal
O Nobel de economia Paul Krugman tem vindo a alertar no seu blog (aqui referido ao lado) contra um dogma do dólar forte e como moeda de referência internacional - v. http://krugman.blogs.nytimes.com/2009/10/09/beware-the-dollar-hawks/. Considerando até alguns comentários que têm sido feitos a posts como esse, uma política monetária norte-americana que aceite alguma desvalorização dessa moeda apoiaria as exportações e travaria as importações dos EUA, ajudando a resolver o deficit comercial desse país. Resta saber se o sol que assim secaria este deficit não queimaria ao lado algum nabal maior ainda.
Pergunto-me isto por me lembrar de números como: "Entre 1990 e 2000, o deficit comercial americano passou de 100 para 450 mil milhões de dólares". "O excedente da balança comercial americana em relação aos bens de tecnologia avançada passou de 35 mil milhões de dólares em 1990 para 5 mil milhões em 2001, e esta era deficitária em Janeiro de 2002. (...) Nas vésperas da depressão de 1929, 44,5% da produção industrial mundial encontrava-se nos Estados Unidos (...). Setenta anos mais tarde, o produto industrial americano é um pouco inferior ao da União Europeia e ligeiramente superior ao do Japão. Esta queda de poder económico não é compensada pela actividade das multinacionais americanas." - in: Emmanuel Todd, Após o Império - Ensaio sobre a decomposição do sistema americano, Lisboa: Edições 70, 2002, pp. 25, 74. Como o autor explica na frase seguinte àquela 1ª, "para equilibrar as suas contas externas, a América precisa de um afluxo de capitais de montante equivalente" (op.cit.: 25). Mas esse afluxo continuará se para os outros países deixar de ser interessante garantir reservas em dólares, uma vez que esta moeda perca o seu estatuto referencial internacional (nomeadamente no negócio do petróleo), e se os juros da banca americana forem inferiores ao de outras regiões económicas?...
Apostar numa política monetária que trave as importações e incremente as exportações pressupõe que a economia norte-americana está apta a, de um lado, responder à procura interna, e, do outro lado, marcar pontos na competição internacional. A evolução daqueles números sugere precisamente o contrário. Não conheço estatísticas mais recentes, mas foi público que a Administração Bush deixou esse país com um enorme deficit comercial (além do orçamental), logo provavelmente não houve aí qualquer inflexão. Naturalmente não será impossível que esta aconteça... mas a médio ou longo prazo, uma vez que se inflictam políticas que possam dificultar isso, e que (isto será o mais decisivo) a sociedade americana volte a ser capaz de aceitar poupar no que tem importado, e de produzir o que tiver procura internacional. Sem ser economista, arrisco-me a desconfiar que sem esta inflexão de capacidades sociais não valerão de grande coisa tanto a política monetária dos falcões criticados por Krugman, quanto a alternativa. E aquele que tem sido o centro político do Ocidente (os EUA) continuará a depreciar-se economicamente.
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
"Esta terra ainda vai cumprir seu ideal..."
Ao menos enquanto a música soa acreditamos em revoluções... que após o último acorde se revelam mais brutais e desorientadas do que as evoluções... mas para estas é precisa força... que a música ajuda a arranjar!
Chico Buarque, Ruy Guerra, e Carlos do Carmo, in:
Chico Buarque, Ruy Guerra, e Carlos do Carmo, in:
[Sugiro-lhe que no plano final abra o clip "Clara Nunes canta Chico"!]
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cultura e artes,
Portugal e o Ocidente
Uma esperança sul-americana!
Um curto apontamento: confesso que talvez desde as minhas leituras adolescentes de O Tempo e o Vento e outras obras de Erico Veríssimo, também de Jorge Amado (a despeito do encanto destas)... me convenci que o Brasil seria um enorme país, mas de futuro sempre adiado. O meu pressuposto era já o de que a mola real dum país não são os minérios, etc., mas as pessoas, mais precisamente, a sua cultura. Mantenho o pressuposto. Mas a recente evolução de alguns indicadores sócio-económicos brasileiros (também argentinos, chilenos) reforçam a ideia de que todavia as culturas não são estáticas, antes evoluem. E portanto podem desenvolver formas de resolver problemas que antes lhes eram irresolúveis. O artigo de Marcel Fortuna Biato em http://www.theglobalist.com/StoryId.aspx?StoryId=8030 aponta neste sentido.
O que nos lembra que o Ocidente não é necessária e exclusivamente a Europa central e ocidental, mais a América anglo-saxónica e Austrália. Toda a América latina, com a sua idiossincrasia índia e africana, se enfim resolver aqueles seus problemas de exclusão da maior parte das respectivas populações, etc., desenvolverá a sua herança ocidental numa novidade que poderá animar toda esta civilização. Como o Presidente Lula enfatizou no seu discurso sobre os Jogos Olímpicos, (ao contrário do resto do Ocidente) o Brasil tem uma enorme percentagem de jovens...
Sobre no entanto as fronteiras ou contornos da civilização ocidental continuo tão cauteloso, e ignorante, quanto me confessei logo no 1º capítulo de O Nó do Problema Ocidental (quando duvidei por exemplo do grau de ocidentalidade de Portugal...).
Mas para acabar por cima este apontamento fica o próximo post!
O que nos lembra que o Ocidente não é necessária e exclusivamente a Europa central e ocidental, mais a América anglo-saxónica e Austrália. Toda a América latina, com a sua idiossincrasia índia e africana, se enfim resolver aqueles seus problemas de exclusão da maior parte das respectivas populações, etc., desenvolverá a sua herança ocidental numa novidade que poderá animar toda esta civilização. Como o Presidente Lula enfatizou no seu discurso sobre os Jogos Olímpicos, (ao contrário do resto do Ocidente) o Brasil tem uma enorme percentagem de jovens...
Sobre no entanto as fronteiras ou contornos da civilização ocidental continuo tão cauteloso, e ignorante, quanto me confessei logo no 1º capítulo de O Nó do Problema Ocidental (quando duvidei por exemplo do grau de ocidentalidade de Portugal...).
Mas para acabar por cima este apontamento fica o próximo post!
sábado, 10 de outubro de 2009
Outra vez o desafio europeu... e ocidental!
Num post sobre a UE e a aceitação irlandesa do Tratado de Lisboa (http://europeangeostrategy.ideasoneurope.eu/2009/10/04/ireland-and-the-lisbon-treaty/), Jolyon Howorth escreveu que
Desde logo o pressuposto é que se o império romano durou mais de meio milénio e mesmo assim acabou um dia, não é porque os países europeus determinam o mundo há meio milénio que hão-de continuar a fazê-lo. E não é porque a presente unificação política da Europa se desenvolve há meio século que há-de durar outro tanto cf. http://onodoproblemaocidental24x7.blogspot.com/2009/10/o-que-e-que-ue-pode-fazer-por-mim-ue.html.
Mas assim há-de ser se as jogadas de políticos profissionais e burocratas, como essa de se repetir um referendo até que a resposta popular seja a que aqueles outros pretendem, contribuirem para uma coesão, não apenas formal (!), entre os europeus. Agora, se pelo contrário acentuarem a desconfiança dos eleitores, assim que houver decisões fracturantes - aquelas que implicam a escolha de preços a pagar por alguém... - o mais provável é que tudo desabe ainda mais depressa do que a implosão da União Soviética.
(É capaz de ir sendo prudente que cada país, ou comunidade estável, não abdique de condições mínimas de sustentabilidade própria, na agricultura, segurança... É que, como tantas outras organizações internacionais ao longo da história, a UE não é necessariamente eterna, e as dependências que nela se estabeleceram de repente poderão deixar de funcionar).
"Europe suffers from major handicaps in the emerging international pecking order: demographic decline, limited natural resources, geographical exiguity, energy dependency and military inadequacy. In a multipolar world where the other players are all unitary nation states, the EU is at a major disadvantage. Either the EU develops a unified strategic approach or it will fail".
Desde logo o pressuposto é que se o império romano durou mais de meio milénio e mesmo assim acabou um dia, não é porque os países europeus determinam o mundo há meio milénio que hão-de continuar a fazê-lo. E não é porque a presente unificação política da Europa se desenvolve há meio século que há-de durar outro tanto cf. http://onodoproblemaocidental24x7.blogspot.com/2009/10/o-que-e-que-ue-pode-fazer-por-mim-ue.html.
Mas assim há-de ser se as jogadas de políticos profissionais e burocratas, como essa de se repetir um referendo até que a resposta popular seja a que aqueles outros pretendem, contribuirem para uma coesão, não apenas formal (!), entre os europeus. Agora, se pelo contrário acentuarem a desconfiança dos eleitores, assim que houver decisões fracturantes - aquelas que implicam a escolha de preços a pagar por alguém... - o mais provável é que tudo desabe ainda mais depressa do que a implosão da União Soviética.
(É capaz de ir sendo prudente que cada país, ou comunidade estável, não abdique de condições mínimas de sustentabilidade própria, na agricultura, segurança... É que, como tantas outras organizações internacionais ao longo da história, a UE não é necessariamente eterna, e as dependências que nela se estabeleceram de repente poderão deixar de funcionar).
"Hell is truth seen too late" (T. Hobbes)
Retirei a citação acima do post de Morris Berman in: http://morrisberman.blogspot.com/2009/09/parable-of-frogs.html - reconheço que talvez não seja o melhor título para esta minha observação, mas a frase pareceu-me tão boa que não resisti!
Esse conhecido ensaísta desenvolve aí uma crítica ao american way of life na base da desconfiança de que, contra A. Smith, o valor da maximização dos resultados de cada indivíduo não leva necessariamente à melhoria sustentável das condições de vida da maioria das pessoas, e porventura a prazo da comunidade inteira. Desde logo, com efeito, há que reconhecer o estatuto epistemológico da mão invisível que regulará o mercado: não se trata da metáfora de um conceito que resulte da exclusão de todas as alternativas possíveis, logo necessário pelo menos até ao surgimento de outra alternativa ainda; é antes um postulado - i.e. algo que se pede que se aceite, ou a proposta de que se pense a realidade económica como se ela fosse assim, a ver se funciona.
Ao lado, pois, pode-se igualmente postular que esta realidade funciona antes homeostaticamente - i.e. numa equilibração entre sectores, de tal modo que um excesso conseguido sectorialmente por alguns indivíduos possa desregular o organismo, e destruir inúmeros órgãos senão mesmo enfim o organismo inteiro.
Ou seja - como argumentei no cap. 4 de O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências - o que economicamente (e assim social, política... culturalmente) está hoje em causa não é directa e simplesmente a crise actual, ou mesmo a nova ordem mundial que se adivinha. A montante desta indicação, está em causa o esquema teórico que, em 1º lugar, nos permite reconhecer alguma tal crise, em 2º lugar, diagnosticá-la, e em 3º lugar (espera-se!) enquadrar medidas terapêuticas. Afinal, funciona melhor conceber a economia como naturalmente resultante das acções individuais, ou como resultante da relação de equilíbrio que cada uma destas estabelece com as demais?
[Fui à procura e encontrei: em Não todos, mas vários caminhos levam a Roma tinha registado uma pista sobre esta última pergunta.]
P.S. - Ao american way of life Berman contrapõe o mexican way of life. Bem, não duvido de que no México existirão "ilhas"... de resto como nos EUA (e aqui estas até serão grandes!); receio porém - dada a imagem comum que se tem do outro lado do Rio Grande, v. ex. Os EUA e o mundo - séc. XXI - que a emenda de Berman seja ainda pior do que o soneto!
Esse conhecido ensaísta desenvolve aí uma crítica ao american way of life na base da desconfiança de que, contra A. Smith, o valor da maximização dos resultados de cada indivíduo não leva necessariamente à melhoria sustentável das condições de vida da maioria das pessoas, e porventura a prazo da comunidade inteira. Desde logo, com efeito, há que reconhecer o estatuto epistemológico da mão invisível que regulará o mercado: não se trata da metáfora de um conceito que resulte da exclusão de todas as alternativas possíveis, logo necessário pelo menos até ao surgimento de outra alternativa ainda; é antes um postulado - i.e. algo que se pede que se aceite, ou a proposta de que se pense a realidade económica como se ela fosse assim, a ver se funciona.
Ao lado, pois, pode-se igualmente postular que esta realidade funciona antes homeostaticamente - i.e. numa equilibração entre sectores, de tal modo que um excesso conseguido sectorialmente por alguns indivíduos possa desregular o organismo, e destruir inúmeros órgãos senão mesmo enfim o organismo inteiro.
Ou seja - como argumentei no cap. 4 de O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências - o que economicamente (e assim social, política... culturalmente) está hoje em causa não é directa e simplesmente a crise actual, ou mesmo a nova ordem mundial que se adivinha. A montante desta indicação, está em causa o esquema teórico que, em 1º lugar, nos permite reconhecer alguma tal crise, em 2º lugar, diagnosticá-la, e em 3º lugar (espera-se!) enquadrar medidas terapêuticas. Afinal, funciona melhor conceber a economia como naturalmente resultante das acções individuais, ou como resultante da relação de equilíbrio que cada uma destas estabelece com as demais?
[Fui à procura e encontrei: em Não todos, mas vários caminhos levam a Roma tinha registado uma pista sobre esta última pergunta.]
P.S. - Ao american way of life Berman contrapõe o mexican way of life. Bem, não duvido de que no México existirão "ilhas"... de resto como nos EUA (e aqui estas até serão grandes!); receio porém - dada a imagem comum que se tem do outro lado do Rio Grande, v. ex. Os EUA e o mundo - séc. XXI - que a emenda de Berman seja ainda pior do que o soneto!
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
Por um sentido da existência
Da entrevista a Charles Taylor referida no post anterior retiro ainda esta passagem:
"‘What makes things important in the end’ can’t simply turn on fulfilling or satisfying the self. That puts you in a kind of regress: ‘Okay! But what is it that is going to give me self-fulfilment?’ You have in the end to point to some purpose in something beyond you, such as in the way things are, or the way the universe is, or the way human beings are, or the direction of human history. The things that people find deep, deep self-fulfilment in all have that feature. One person says “I want to work with Médecins Sans Frontieres in the Congo” and another person says “I want to write the Great Canadian novel.” It should be obvious that all these forms of very deep satisfaction refer to something that reaches beyond you."
Ou seja, estará certo vir para aqui escrever que os americanos nunca foram à Lua (foi tudo truques de Hollywood) porque para mim isso é que é verdade, mas estará igualmente certo que no blogue ao lado a autora reflicta sobre "um pequeno passo para o homem..." porque para ela este foi verdadeiro... A pedra no sapato é que então, tanto eu como ela, temos que ter respondido antes à pergunta "O que é que me há-de satisfazer?"; responderíamos: o que for verdade; mas como é que o reconhecemos?... - e a pescadinha morde o rabo.
Para evitar estes círculos viciosos não escapamos pois à pergunta pelo que é o universo, à pergunta pelo que são os seres humanos... Se desistimos de lhes responder (em geral, não apenas para mim e para ti!) - é aquela auto-realização pessoal que acabará por ficar comprometida.
"‘What makes things important in the end’ can’t simply turn on fulfilling or satisfying the self. That puts you in a kind of regress: ‘Okay! But what is it that is going to give me self-fulfilment?’ You have in the end to point to some purpose in something beyond you, such as in the way things are, or the way the universe is, or the way human beings are, or the direction of human history. The things that people find deep, deep self-fulfilment in all have that feature. One person says “I want to work with Médecins Sans Frontieres in the Congo” and another person says “I want to write the Great Canadian novel.” It should be obvious that all these forms of very deep satisfaction refer to something that reaches beyond you."
Ou seja, estará certo vir para aqui escrever que os americanos nunca foram à Lua (foi tudo truques de Hollywood) porque para mim isso é que é verdade, mas estará igualmente certo que no blogue ao lado a autora reflicta sobre "um pequeno passo para o homem..." porque para ela este foi verdadeiro... A pedra no sapato é que então, tanto eu como ela, temos que ter respondido antes à pergunta "O que é que me há-de satisfazer?"; responderíamos: o que for verdade; mas como é que o reconhecemos?... - e a pescadinha morde o rabo.
Para evitar estes círculos viciosos não escapamos pois à pergunta pelo que é o universo, à pergunta pelo que são os seres humanos... Se desistimos de lhes responder (em geral, não apenas para mim e para ti!) - é aquela auto-realização pessoal que acabará por ficar comprometida.
Sobre a reacção às diferenças culturais
Charles Taylor, um dos mais proeminentes filósofos vivos, deu uma entrevista à Philosophy Now (Nº 74, July/August 2009, in: http://www.philosophynow.org/issue74/74taylor.htm) na qual sugeriu - sem argumentar, que uma entrevista não dá para isso - uma pista importante para as nossas sociedades crescentemente cosmopolitas: com efeito a curva demográfica negativa na Europa e população norte-americana tradicional, compensada pela imigração de diversas proveniências, mais os efeitos da globalização cultural e económica, coloca-nos a conviver com a diferença nos nossos bairros, empregos, lojas... E crescentemente não será uma convivência no seio das nossas velhas regras de convivência, como Taylor bem diz, estas regras não são neutrais, têm implicações culturais, logo o maior peso daquelas diferenças forçará alguma alteração no modo de vida que desenvolvemos da nossa tradição, e com o qual recebemos as primeiras gerações de imigrantes. Por exemplo: o nosso respeito pela opinião de um indivíduo chinês permite que este defenda, connosco, a imigração, mas contra nós, que o que importa não sejam os indivíduos mas sim os grupos, de forma que, se ao fim duns anos de imigração chinesa o grupo chinês ultrapassar o nativo, cada um destes terá que se calar na terra que foi dos seus antepassados porque agora aí o mais importante passará a ser o grupo dominante...
Voltemos ao presente - Em vista a manter a coesão temos hoje 2 possibilidades: ou procurar denominadores comuns que dissolvam ao máximo as diferenças, ou reconhecermos frontalmente estas últimas e implementarmos um discurso racional sobre elas que evite excessos emocionais, e que vá facultando alguma forma de convivência.
A razão pela qual o filósofo canadiano prefere esta 2ª é que não considera possível uma solução final, uma verdade acabada que se constituísse naquele denominador. Neste suposto, será mais sensato reconhecer e aceitar viver as tensões do cosmopolitismo, procurando uma convivência não destrutiva e até mutuamente estimulante quando possível, do que menosprezar essas tensões... o que não as dissolve, apenas as deixa livres da reflexão racional que melhor evita excessos emocionais destrutivos.
As alternativas são: formular um tal denominador cuja aplicação político-social prove não ser destrutiva (como foi o comunismo, que em nome da Humanidade fez matar milhões de mulheres e homens!); ou tentar enviar de volta os imigrantes, empobrecendo nós numa Europa progressivamente envelhecida - no caso dos EUA, como boa parte da compensação demográfica será feita por latinos que já lá vivem, só se lhes quiserem dar o mesmo destino que deram antes aos índios...
Voltemos ao presente - Em vista a manter a coesão temos hoje 2 possibilidades: ou procurar denominadores comuns que dissolvam ao máximo as diferenças, ou reconhecermos frontalmente estas últimas e implementarmos um discurso racional sobre elas que evite excessos emocionais, e que vá facultando alguma forma de convivência.
A razão pela qual o filósofo canadiano prefere esta 2ª é que não considera possível uma solução final, uma verdade acabada que se constituísse naquele denominador. Neste suposto, será mais sensato reconhecer e aceitar viver as tensões do cosmopolitismo, procurando uma convivência não destrutiva e até mutuamente estimulante quando possível, do que menosprezar essas tensões... o que não as dissolve, apenas as deixa livres da reflexão racional que melhor evita excessos emocionais destrutivos.
As alternativas são: formular um tal denominador cuja aplicação político-social prove não ser destrutiva (como foi o comunismo, que em nome da Humanidade fez matar milhões de mulheres e homens!); ou tentar enviar de volta os imigrantes, empobrecendo nós numa Europa progressivamente envelhecida - no caso dos EUA, como boa parte da compensação demográfica será feita por latinos que já lá vivem, só se lhes quiserem dar o mesmo destino que deram antes aos índios...
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segunda-feira, 5 de outubro de 2009
"La fin du déterminisme en biologie" (continuação)
No 1º post com este título citei Cécile Klingler, apontando que seja qual for o paradigma epistemológico - determinista ou probabilista - a biologia contemporânea tem que enfrentar a questão das mesmas células controlarem a variabilidade de expressão de certos genes, deixando-a livre a outros genes. No resumo que fiz não incluí esta passagem anterior: "les gènes présentant le moins de variations aléatoires dans leur expression sont ceux indispensables au fonctionnement de base de la cellule. (...) Tandis que les gènes pour lesquels on repère une grande stochasticité d'expression sont des gènes qui n'interviennent pas dans ces processus fondamentaux" (op.cit.: 50). Foi uma dupla falha minha: desde logo, na sequência desta passagem creio ficar mais clara aquela outra.
Mas além disso ficará também mais claro como poderá a metafísica apoiar, a montante, esse desenvolvimento científico: é que tanto a diferença entre o funcionamento de base dum ente e o que é acessório a este último, assim como o modo geral como os entes se constituem ao longo do tempo, são objecto dessa disciplina, desde a diferença aristotélica entre substância e acidentes, até à actual metafísica da persistência (endurantismo vs. perdurantismo). A determinação exacta destes conceitos e das suas relações abrirá asssim as janelas de investigação mencionadas por J.-J. Kupiec no mesmo Dossier - v. Do sentido e horizonte da "ciência" (2).
Ah! "a metafísica poderá ajudar"... na condição de haver algum critério que permita distinguir as fórmulas metafísicas úteis, para já nem dizer "verdadeiras", das inúteis... Como diz o outro: é nestes detalhes que o diabo está!
Mas além disso ficará também mais claro como poderá a metafísica apoiar, a montante, esse desenvolvimento científico: é que tanto a diferença entre o funcionamento de base dum ente e o que é acessório a este último, assim como o modo geral como os entes se constituem ao longo do tempo, são objecto dessa disciplina, desde a diferença aristotélica entre substância e acidentes, até à actual metafísica da persistência (endurantismo vs. perdurantismo). A determinação exacta destes conceitos e das suas relações abrirá asssim as janelas de investigação mencionadas por J.-J. Kupiec no mesmo Dossier - v. Do sentido e horizonte da "ciência" (2).
Ah! "a metafísica poderá ajudar"... na condição de haver algum critério que permita distinguir as fórmulas metafísicas úteis, para já nem dizer "verdadeiras", das inúteis... Como diz o outro: é nestes detalhes que o diabo está!
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domingo, 4 de outubro de 2009
Recado americano para cada estudante... e cada educador
No post anterior ia introduzir o link para a transcrição deste discurso de Barack Obama, mas, se o conteúdo era o que ali me interessava, a forma do discurso (i.e. a capacidade retórica de comunicação eficaz) bem merece ser também atendida. Fica assim o video:
O que é que a UE pode fazer por mim? = UE caminhando à beira da divergência
Nem foi preciso chegar à 3ª para ser de vez, bastou a 2ª... mas se fosse preciso naturalmente lá se iria até que a resposta fosse a que os organizadores do jogo europeu tinham decidido à partida que seria a correcta (por esta altura o aluno irlandês já terá sido remetido para a turma da última letra na escola europeia!). Mas aprecie-se a arte, ou a sorte, daqueles organizadores: a repetição da pergunta foi feita exactamente quando a integração europeia, e portanto o Tratado de Lisboa, se contrapunha (nas promessas!...) ao papão do desemprego. Resta só identificar o papão polaco e checo, e fazer a mesma pergunta sempre da forma mais inocente.
O que esta inocência estabelece, no entanto, é uma "União" (Europeia) nos antípodas da "união" dos Estados Americanos (EUA), no que à participação e identificação colectiva das pessoas diz respeito. É que nesta última, o recente discurso do Presidente aos estudantes voltou a lembrá-lo (v. próximo post), o que se pergunta com Kennedy é "O que é que podes fazer pelo teu país?". A consequência mais provável, me parece, é que enquanto a coesão dos EUA resistirá a escolhas em situações difíceis - aquelas nas quais há preços a pagar - já a UE se constitui numa "união" apenas para tempos de vacas gordas, assim que a situação exigir escolhas que sacrifiquem alguns estes deixarão de ter razão para nela se manterem.
Até porque o Tratado de Lisboa, no Art. 9º-C (in: http://www.eurocid.pt/pls/wsd/wsdwcot0.detalhe_area?p_sub=52&p_cot_id=2936&p_est_id=7120), prevê que a partir de 2014 a definição das políticas e a coordenação, mais as funções legislativa e orçamental, serão tomadas (eminentemente pelo Conselho de Ministros, onde os Estados como tais se representam) pela dupla maioria de 55% dos Estados, e 65% da população da UE - critérios político e demográfico a que por certo se juntará o critério económico nas negociações de bastidores entre os países ricos e aqueles outros que, com os anteriores, possam perfazer aquelas maiorias. Os restantes ficarão de fora. Ou seja, só faltam as ratificações checa e polaca para termos umas regras de jogo adequadas à pergunta americana... a implementar porém por jogadores que respondem à pergunta inversa.
Na nota 6 de O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências (pp. 99, 100), a propósito da aparente solidez dessas 2 Uniões que corporizam politicamente a civilização ocidental, e da opção implementada nesse Artigo (e outros) do Tratado de Lisboa, escrevi:
"Na ressaca do projecto nazi, tendo ainda presente o de Napoleão Bonaparte ou até o dos herdeiros de Carlos V, os fundadores das Comunidades Europeias (...) optaram pela equiparação formal dos Estados intervenientes. E assim foi possível fazer funcionar (...) a única união europeia desde o Sacro-Império. Até que, considerando hoje que as regras do jogo europeu não seriam eficazes com um maior número de participantes, os [governantes europeus e burocratas da UE] – estes já não da geração que viveu a II Guerra Mundial… – obrigaram-se a escolher entre: A) não alargar a UE aos países do antigo bloco soviético, limitando-se a eventuais parcerias privilegiadas; B) alargá-la, mas reduzindo a União a um espaço comercial comum, e ao pouco mais que permanentes negociações permitissem; C) alargar, mas alterando as regras do jogo. De imediato enjeitaram a possibilidade A. Para com o Tratado de Lisboa optarem enfim pela C".
O que esta inocência estabelece, no entanto, é uma "União" (Europeia) nos antípodas da "união" dos Estados Americanos (EUA), no que à participação e identificação colectiva das pessoas diz respeito. É que nesta última, o recente discurso do Presidente aos estudantes voltou a lembrá-lo (v. próximo post), o que se pergunta com Kennedy é "O que é que podes fazer pelo teu país?". A consequência mais provável, me parece, é que enquanto a coesão dos EUA resistirá a escolhas em situações difíceis - aquelas nas quais há preços a pagar - já a UE se constitui numa "união" apenas para tempos de vacas gordas, assim que a situação exigir escolhas que sacrifiquem alguns estes deixarão de ter razão para nela se manterem.
Até porque o Tratado de Lisboa, no Art. 9º-C (in: http://www.eurocid.pt/pls/wsd/wsdwcot0.detalhe_area?p_sub=52&p_cot_id=2936&p_est_id=7120), prevê que a partir de 2014 a definição das políticas e a coordenação, mais as funções legislativa e orçamental, serão tomadas (eminentemente pelo Conselho de Ministros, onde os Estados como tais se representam) pela dupla maioria de 55% dos Estados, e 65% da população da UE - critérios político e demográfico a que por certo se juntará o critério económico nas negociações de bastidores entre os países ricos e aqueles outros que, com os anteriores, possam perfazer aquelas maiorias. Os restantes ficarão de fora. Ou seja, só faltam as ratificações checa e polaca para termos umas regras de jogo adequadas à pergunta americana... a implementar porém por jogadores que respondem à pergunta inversa.
Na nota 6 de O Nó do Problema Ocidental - A dimensão das ciências (pp. 99, 100), a propósito da aparente solidez dessas 2 Uniões que corporizam politicamente a civilização ocidental, e da opção implementada nesse Artigo (e outros) do Tratado de Lisboa, escrevi:
"Na ressaca do projecto nazi, tendo ainda presente o de Napoleão Bonaparte ou até o dos herdeiros de Carlos V, os fundadores das Comunidades Europeias (...) optaram pela equiparação formal dos Estados intervenientes. E assim foi possível fazer funcionar (...) a única união europeia desde o Sacro-Império. Até que, considerando hoje que as regras do jogo europeu não seriam eficazes com um maior número de participantes, os [governantes europeus e burocratas da UE] – estes já não da geração que viveu a II Guerra Mundial… – obrigaram-se a escolher entre: A) não alargar a UE aos países do antigo bloco soviético, limitando-se a eventuais parcerias privilegiadas; B) alargá-la, mas reduzindo a União a um espaço comercial comum, e ao pouco mais que permanentes negociações permitissem; C) alargar, mas alterando as regras do jogo. De imediato enjeitaram a possibilidade A. Para com o Tratado de Lisboa optarem enfim pela C".
O poder e benefícios - pelo menos a curto prazo... e a médio podem viver dos pecúlios entretanto reunidos - dos políticos profissionais e burocratas europeus será assim por certo maior do que nas opções A ou B. A questão é a da sustentabilidade desta inversão da estratégia seguida desde a CEE até agora. Por exemplo, quando for preciso assentar numa (em+uma!) resposta da UE à sua perda de competitividade internacional na iminente saída da presente crise financeiro-económica, à imigração que responda à curva demográfica negativa europeia, etc. - cf. 2ª nota de http://onodoproblemaocidental24x7.blogspot.com/2009/08/proxima-decada-portuguesa.html. A previsão de Michael Vlahos, v. http://onodoproblemaocidental24x7.blogspot.com/2009/09/os-eua-e-o-mundo-sec-xxi.html, parece assim ameaçar o Ocidente eminentemente pelo lado europeu...
sábado, 3 de outubro de 2009
Do sentido e horizonte da "ciência" (2)
Concluindo a entrevista aqui referida no post anterior, Jean-Jacques Kupiec diz não acreditar na possibilidade duma "expérience miracle" que por si só garanta a convicção. Pois "une théorie n'est pas la vérité absolue. C'est une manière d'assembler entre eux des faits expérimentaux. (...) Deux théories ouvrent des fenêtres différents, qui initient de nouveaux programmes de recherches différents" (op.cit.: 53). (Não há dúvida: a certeza é coisa da poesia, do discurso político... não da ciência).
Em Do sentido e horizonte da "ciência" e no post que lhe foi anterior, então a partir da cosmologia e física, também ficou esboçada esta ideia de que as teorias se não dispõem como que paralelamente perante os factos únicos, cuja adequação seleccionaria as 1ªs. Antes estes últimos constituem-se já no seio de redes perceptivas e conceptuais, nas quais à partida se escolhe o que isolar como 1 "facto" - ex. a variabilidade celular, desprezada pelos deterministas, empolada pelos probabilistas. Cada rede terá os seus nós fortes... e os fracos (daí não bastar 1 desmentido ou 1 confirmação empírica de uma única previsão para se manter ou recusar toda uma rede).
Na epistemologia contemporânea esta posição geral tem sido designada "coerentismo" - uma teoria é válida por ser coerente com aquelas com que se correlaciona (e não por corresponder a quaisquer factos para além dessa rede). Resta saber porque é que a rede proposta por exemplo por um esquizofrénico inteligente e culto, a despeito dessa rede poder ser lógica e bastante abrangente, persiste disfuncional - e precisamente por isso o esquizofrénico é "louco" (= incapaz de cuidar de si) e não apenas "excêntrico" ou "diferente da maioria". Parece que haverá mais qualquer coisinha para além das nossas crenças e da coerência entre estas...
Em Do sentido e horizonte da "ciência" e no post que lhe foi anterior, então a partir da cosmologia e física, também ficou esboçada esta ideia de que as teorias se não dispõem como que paralelamente perante os factos únicos, cuja adequação seleccionaria as 1ªs. Antes estes últimos constituem-se já no seio de redes perceptivas e conceptuais, nas quais à partida se escolhe o que isolar como 1 "facto" - ex. a variabilidade celular, desprezada pelos deterministas, empolada pelos probabilistas. Cada rede terá os seus nós fortes... e os fracos (daí não bastar 1 desmentido ou 1 confirmação empírica de uma única previsão para se manter ou recusar toda uma rede).
Na epistemologia contemporânea esta posição geral tem sido designada "coerentismo" - uma teoria é válida por ser coerente com aquelas com que se correlaciona (e não por corresponder a quaisquer factos para além dessa rede). Resta saber porque é que a rede proposta por exemplo por um esquizofrénico inteligente e culto, a despeito dessa rede poder ser lógica e bastante abrangente, persiste disfuncional - e precisamente por isso o esquizofrénico é "louco" (= incapaz de cuidar de si) e não apenas "excêntrico" ou "diferente da maioria". Parece que haverá mais qualquer coisinha para além das nossas crenças e da coerência entre estas...
"La fin du déterminisme en biologie"
O título deste post é também o do 1º artigo do Dossier "Le hasard au coeur de la vie", ed. S. Coisne, C. Klingler, in: La Recherche, Nº 434 (Octobre 2009): 38-53. Resumindo: nesse artigo A. Pàldi e S. Coisne recordam como a biologia se desenvolveu desde o séc. XVII sob o postulado do filósofo, matemático, e fisiólogo Renée Descartes de que cada processo num organismo vivo (qual máquina) decorre das partes que o compõem, e da organização destas. Todavia nem as recentes sequências do genoma ou catálogos de enzimas e proteínas têm facultado a explicação cabal do funcionamento mesmo dos organismos mais simples. Por outro lado, os instrumentos para observação dos componentes celulares em células individuais, a partir da década de 1990, permitiram reconhecer que as proteínas reguladoras da cópia e transmissão dos genes que lhes são correlativos são (aquelas proteínas) escassas, e deslocam-se aleatoriamente. Logo a probabilidade de que proteína e gene se encontrem é mínima. Logo a causalidade determinista é teoricamente substituída pelo acaso, e por algum critério de selecção das situações verificadas - segundo este critério a maioria dos casos será semelhante, daí a impressão macroscópica, ou colectiva em vez de individual, duma uniformidade determinista (afinal dum ovo de galinha costuma resultar... uma galinha).
No 2º artigo as organizadoras apontam o facto das células sãs precisarem de menos glucose do que as cancerígenas, pelo que, num ambiente de escassez, serão naturalmente seleccionadas em detrimento das 2ªs, como exemplo da vantagem evolutiva da diversidade celular (razão para o estabelecimento desta).
À pergunta "Les gènes jouent-ils aux dés?" (3º artigo), C. Klingler responde que nem isso nem o oposto, antes os processos deterministas constituem-se como casos particulares dos probabilistas, aqueles cuja probabilidade é próxima de 1 (da necessidade). E exemplifica com um circuito de 3 genes idênticos que produz intermitentemente uma proteína fluorescente, a qual, ao contrário da previsão determinista, não surge sempre numa mesma frequência (v. o filme "The repressilator" em http://www.elowitz.caltech.edu/movies.html). Aponta também os exemplos da competência apenas duma pequena percentagem de células numa população destas para absorverem fragmentos de ADN no meio ambiente, e da composição do olho da mosca, para sustentar uma influência fisiológica do acaso em organismos uni ou pluricelulares.
Klingler apresenta assim a biologia sistémica, que visa as redes de interacção ao nível celular e orgânico. Mas termina assinalando "que le concept probabiliste l'emporte ou pas, il restera à comprendre comment une même cellule peut contrôler la variabilité d'expression de certains gènes, tout en laissant libre champ à cette variabilité pour d'autres gènes" (p.50).
Desenvolvendo a questão do critério de selecção atrás referido, na entrevista a Jean-Jacques Kupiec este biólogo molecular sustenta enfim que "Nos cellules sont soumises à la sélection naturelle", até porque o princípio de que cada molécula, na sua estrutura tridimensional, apenas se pode relacionar com aquela com que se encaixe (como 2 peças de um puzzle), é falso: podem relacionar-se com muitas, e a escolha é aleatória. Importa pois considerar já não os processos individuais, mas os populacionais (moleculares ou celulares), os quais se equilibram entre uma estabilidade determinada pela selecção natural ao nível dessas populações, e variabilidade que permite a evolução.
A favor desta abordagem probabilista, Kupiec refere ainda que esta explica por exemplo que 95% do ADN não codifique qualquer gene, o que não é explicado pela abordagem determinista (a que propósito a selecção natural, ao nível dos organismos, manteria tamanha inutilidade?...).
Constatações e perguntas como esta última são induções para um outro paradigma que não o cartesiano-determinista. Mas assim, na perplexidade e nos embaraços que assumem, tornam-se também apelos a um movimento teórico inverso: o da formulação do ente (aquilo que há enquanto tal), nomeadamente na sua organização todo-partes, que se proporcione como modelo formal a aplicar pela bioquímica como por qualquer outra ciência, numa orientação destas últimas que procurariam então como que preencher os espaços, ou dar valores às variáveis prescritas por tal modelo, nos respectivos (de cada ciência) campos.
Ou seja, em alternativa à hipótese corpuscular da matéria, que os cientistas Modernos repescaram aos atomistas gregos com tão bons resultados, estes cientistas contemporâneos parecem apelar à formulação eficaz da matéria constituída holística e processualmente.
A formulação desses modelos ou hipóteses básicas é tarefa da metafísica. E assim voltamos ao exemplo de Descartes, que trazia a matemática à filosofia e a filosofia à matemática - Ou como está gravado no átrio do Instituto Abel Salazar, "Quem só sabe de medicina, nem medicina sabe".
No 2º artigo as organizadoras apontam o facto das células sãs precisarem de menos glucose do que as cancerígenas, pelo que, num ambiente de escassez, serão naturalmente seleccionadas em detrimento das 2ªs, como exemplo da vantagem evolutiva da diversidade celular (razão para o estabelecimento desta).
À pergunta "Les gènes jouent-ils aux dés?" (3º artigo), C. Klingler responde que nem isso nem o oposto, antes os processos deterministas constituem-se como casos particulares dos probabilistas, aqueles cuja probabilidade é próxima de 1 (da necessidade). E exemplifica com um circuito de 3 genes idênticos que produz intermitentemente uma proteína fluorescente, a qual, ao contrário da previsão determinista, não surge sempre numa mesma frequência (v. o filme "The repressilator" em http://www.elowitz.caltech.edu/movies.html). Aponta também os exemplos da competência apenas duma pequena percentagem de células numa população destas para absorverem fragmentos de ADN no meio ambiente, e da composição do olho da mosca, para sustentar uma influência fisiológica do acaso em organismos uni ou pluricelulares.
Klingler apresenta assim a biologia sistémica, que visa as redes de interacção ao nível celular e orgânico. Mas termina assinalando "que le concept probabiliste l'emporte ou pas, il restera à comprendre comment une même cellule peut contrôler la variabilité d'expression de certains gènes, tout en laissant libre champ à cette variabilité pour d'autres gènes" (p.50).
Desenvolvendo a questão do critério de selecção atrás referido, na entrevista a Jean-Jacques Kupiec este biólogo molecular sustenta enfim que "Nos cellules sont soumises à la sélection naturelle", até porque o princípio de que cada molécula, na sua estrutura tridimensional, apenas se pode relacionar com aquela com que se encaixe (como 2 peças de um puzzle), é falso: podem relacionar-se com muitas, e a escolha é aleatória. Importa pois considerar já não os processos individuais, mas os populacionais (moleculares ou celulares), os quais se equilibram entre uma estabilidade determinada pela selecção natural ao nível dessas populações, e variabilidade que permite a evolução.
A favor desta abordagem probabilista, Kupiec refere ainda que esta explica por exemplo que 95% do ADN não codifique qualquer gene, o que não é explicado pela abordagem determinista (a que propósito a selecção natural, ao nível dos organismos, manteria tamanha inutilidade?...).
Constatações e perguntas como esta última são induções para um outro paradigma que não o cartesiano-determinista. Mas assim, na perplexidade e nos embaraços que assumem, tornam-se também apelos a um movimento teórico inverso: o da formulação do ente (aquilo que há enquanto tal), nomeadamente na sua organização todo-partes, que se proporcione como modelo formal a aplicar pela bioquímica como por qualquer outra ciência, numa orientação destas últimas que procurariam então como que preencher os espaços, ou dar valores às variáveis prescritas por tal modelo, nos respectivos (de cada ciência) campos.
Ou seja, em alternativa à hipótese corpuscular da matéria, que os cientistas Modernos repescaram aos atomistas gregos com tão bons resultados, estes cientistas contemporâneos parecem apelar à formulação eficaz da matéria constituída holística e processualmente.
A formulação desses modelos ou hipóteses básicas é tarefa da metafísica. E assim voltamos ao exemplo de Descartes, que trazia a matemática à filosofia e a filosofia à matemática - Ou como está gravado no átrio do Instituto Abel Salazar, "Quem só sabe de medicina, nem medicina sabe".
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quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Do sentido e horizonte da "ciência"
Num prolongamento do post anterior coloco aqui o trecho final duma entrevista a S. Weinberg em 1979:
A entrevista completa encontra-se em http://nobelprize.org/mediaplayer/index.php?id=397. Na qual chamo a sua atenção para o minuto 13:45, quando Weinberg reconhece o problema epistemológico da determinação do problema que se enfrenta numa ciência, neste caso em cosmologia ou física. Isto é, se, num 1º movimento reflexivo, cada afirmação depende dos processos que se escolheu para dar tal resposta a alguma pergunta implícita (o método), e, num 2º movimento, depende do modo como se equacionou nessa pergunta um problema sentido, antes ainda haverá o simples assinalamento de algum problema. Começa assim aqui, nesta percepção de um obstáculo, e no seu assinalamento ainda pré-científico (anterior a qualquer equação, determinação dos processos de ilação, metodologia particular à área, etc.), a orientação do que se desenvolverá cientificamente. Mais uma vez, o que chamamos "ciência" surge como uma etapa tardia, longa mas tardia, de um processo de determinação, de escolha teórica que começa bem antes.
Post Scriptum - Um ensino das ciências em geral sem epistemologia, um ensino de matemática ou física quântica sem (respectivamente) a metafísica da questão dos universais, ou da persistência (endurantismo vs. perdurantismo e hipótese corpuscular da matéria)... é um ensino que desmente à partida tudo o que aí se trabalha precisamente no seu estatuto de "científico"!
A entrevista completa encontra-se em http://nobelprize.org/mediaplayer/index.php?id=397. Na qual chamo a sua atenção para o minuto 13:45, quando Weinberg reconhece o problema epistemológico da determinação do problema que se enfrenta numa ciência, neste caso em cosmologia ou física. Isto é, se, num 1º movimento reflexivo, cada afirmação depende dos processos que se escolheu para dar tal resposta a alguma pergunta implícita (o método), e, num 2º movimento, depende do modo como se equacionou nessa pergunta um problema sentido, antes ainda haverá o simples assinalamento de algum problema. Começa assim aqui, nesta percepção de um obstáculo, e no seu assinalamento ainda pré-científico (anterior a qualquer equação, determinação dos processos de ilação, metodologia particular à área, etc.), a orientação do que se desenvolverá cientificamente. Mais uma vez, o que chamamos "ciência" surge como uma etapa tardia, longa mas tardia, de um processo de determinação, de escolha teórica que começa bem antes.
Post Scriptum - Um ensino das ciências em geral sem epistemologia, um ensino de matemática ou física quântica sem (respectivamente) a metafísica da questão dos universais, ou da persistência (endurantismo vs. perdurantismo e hipótese corpuscular da matéria)... é um ensino que desmente à partida tudo o que aí se trabalha precisamente no seu estatuto de "científico"!
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Ciência - justificação... e beleza!
No post http://dererummundi.blogspot.com/2009/09/budistas-e-filosofias-avant-gard.html, do blogue De Rerum Natura, Helena Damião dá conta da conferência de Alexandre Quintanilha na qual este cientista apontou como valores orientadores (e constitutivos) da ciência i) a exactidão preditiva, ii) a coerência interna da teoria proposta, iii) a consistência desta última com os princípios que estruturam o horizonte em que ela se integra, iv) a sua capacidade de esclarecer simultaneamente dados distintos, e v) a sua fecundidade na abertura de novos domínios de pensamento. Valores aos quais adiciona vi) o da beleza da teoria.
Reconhecendo a problematicidade epistemológica deste último valor, Damião refere uma diferença na atitude de investigadores ocidentais e do Extremo Oriente. Penso que a seguinte passagem do Nobel de física Steven Weinberg avança uma sugestiva proposta de compreensão do que possa ser isso de "beleza teórica":
"It may seem wacky that a physicist looking at a theory says, 'That's a beautiful theory,' and therefore takes it seriously as a possible theory of nature. (...). The kind of beauty we look for is a kind of rigidity, a sense that the theory is the way it is because if you change anything in it, it would make no sense.
(...) You don't want a theory that accounts for any conceivable set of data; you want a theory that predicts that the data must be just so, because then you will have explained why the world is the way it is. That's a kind of beauty that you also see in works of art, perhaps in a sonata of Chopin, for example. You have the sense that a note has been struck wrong even if you've never heard the piece before." (in: http://www.pbs.org/wgbh/nova/elegant/view-weinberg.html).
Ou seja, enquanto a coerência interna é estritamente negativa - recusa que um elemento teórico contradiga outro - a beleza será positiva - decorre do contributo, ou indução de cada elemento em relação aos demais (nenhum dos quais é apenas postulado por exigência empírica), a que se acrescentará ainda a completude: a rede assim tecida apresentar-se-á como suficiente, acabada, na explicação do respectivo campo de referências. Por exemplo, uma fórmula matemática cujos valores sejam fixados pela experiência, e não deduzidos da teoria que gera tal fórmula, não será bela, por mais funcional que se revele.
O juízo estético, porém, além da emocionalidade subjectiva, é culturalmente condicionado - ex. a "beleza" clássica, ordenada, é distinta da "beleza" contemporânea, que integra desarmonias. Mais, o próprio sentido da produção de beleza, desde pelos vistos a ciência à arte em geral (e aquela, ao versar o belo, participa desta!), é culturalmente contingente: Veja-se como, no lugar da definição perfeita, da proporcionalidade clássicas, se pode colocar a indeterminação (ex. pintura impressionista), ou mesmo a ambiguidade poética - cf. Da arte às ciências: a ambiguidade como paradigma .... A concretização última daqueles valores epistemológicos, pois, tornar-se-á culturalmente condicionada. O que nos coloca nos antípodas da concepção de ciência na cultura clássica, que afirmava um universo matematicamente ordenado (sem rasto de subjectividade), e à qual com Weinberg fomos buscar aquela pista de compreensão de "beleza teórica".
Enfim, se a reflexão epistemológica sobre as ciências ainda é ela própria científica (e se não o é, que credibilidade têm as afirmações de Quintanilha?...), em última análise decidir-se-á esteticamente. Ou melhor, cultural e historicamente, dado o condicionamento do juízo estético. De passo fundamentador em passo fundamentador... parece que avançámos para o completo relativismo!
A questão é que os valores anteriores continuam a ser diferenciadores: umas teorias facultam previsões que se verificam, outras não; umas formulações satisfazem o princípio da não-contradição, outras não, etc. Ou seja, o relativismo será apenas residual.
Ficamos pois com a pergunta: como se articula, num mesmo percurso de pensamento, a objectividade das previsões e coerência... com a subjectividade estética?
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